Professora aposentada do DSS da UFPB, Autora de "Os fios (in)visíveis da produção capitalista" e "Informalidade e precarização do trabalho: as novas tramas da produção capitalista"
Professora aposentada do DSS da UFPB, Autora de "Os fios (in)visíveis da produção capitalista" e "Informalidade e precarização do trabalho: as novas tramas da produção capitalista"
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Toda riqueza é produto do trabalho
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Foto: Edu Guimarães/SMABC

A riqueza das Nações foi um livro determinante na minha formação. Impossível apreender importantes passagens do pensamento marxista sem conhecer o de Adam Smith, liberal de boa cepa, daqueles a quem hoje chamariam de transparente (como se ao dizer o que pensa o sujeito se tornasse isento de julgamento). Ele concluiu que a riqueza do mundo é produzida pelo trabalho, mas, da sua perspectiva – a do capitalista – o que nós, os trabalhadores, entendemos como exploração, ele teorizou como sendo a justa remuneração do dinheiro. Grosso modo, o cara tem dinheiro suficiente para desenvolver uma atividade que ele não pode dar conta sozinho. Então, ele compra a força de trabalho de quem não tem dinheiro e, com isso, o seu dinheiro se multiplica. A exploração não é um roubo, é uma cláusula do negócio. É instituída pelo Estado, portanto legal. Já fica claro qual é o lado do Estado. O “Estado de todos” é uma entre as grandes mentiras do capitalismo. Mas essas mentiras engendradas pelo Estado em favor do capital são tão bem contadas, que é mais comum os trabalhadores pensarem como burgueses, que um capitalista perceber o mundo do lugar em que está o trabalhador. Entre essas raridades, lembremos de Friedrich Engels, autor de obras fundamentais e coautor de diversas obras com Marx. Para Engels, a história da humanidade é a história da luta de classes.

Para exemplificar o trabalhador que pensa como burguês, haveria milhões, todos desconhecidos, claro. O filho do dono de uma grande indústria têxtil, no século XIX, na Inglaterra, desempenhar um papel de destaque – talvez o principal – na elaboração da teoria comunista é notável. Mas quando se trata do contrário, quando é o trabalhador a seguir o pensamento do seu empregador, isso é lugar comum. A priori, são retiradas do trabalhador todas as condições para que ele seja capaz de pensar. E não me refiro apenas à escolaridade. A moradia, a alimentação, a saúde, o lazer, a cultura, tudo joga em desfavor da capacidade que todo indivíduo devia ter para elaborar teoricamente a realidade. Para não me alongar, vou tomar como exemplo, o primeiro trabalhador que eu conheci, o meu pai.

Meu pai, seu Toinho, como era conhecido, reproduzia os princípios liberais com tanta propriedade, que eu lamento não ter formação de dramaturga, para escrever uma peça, para qual até já tenho título: Meu pai leu Adam Smith. Quem sabe, agora, que o Miguel Falabella foi demitido da Globo, nós não façamos uma parceria? Está lançado o convite, Falabella, e eu nem faço questão do meu nome em primeiro plano. Claro que meu pai, semianalfabeto, nunca ouviu falar de Adam Smith. Ele só conhecia pessoas cujos nomes fossem em português – Luiz Gonzaga, Frei Damião, Noel Rosa. No dia em que ele atendeu o meu telefone e, do outro lado, estava Raduan Nassar, ele perguntou: o senhor é japonês?

Assim como o meu pai era capaz de citar passagens importantes de A riqueza das nações, sem nem saber que havia uma teoria que dava sustentação ao que ele estava a defender, a maioria dos trabalhadores, sobretudo os mais pobres, não conhece o que a literatura econômica trata como fases do capitalismo – capital comercial, capital industrial e capital bancário –, mas à semelhança do que fazia o meu pai, estão a fortalecer a interpenetração existente entre esses capitais, ao mesmo tempo em que se deixam explorar, hoje, de modo bem pior do que fora pensado por Adam Smith. No século XIX e até parte do XX, a separação entre os produtores/trabalhadores e os meios de produção era nítida. Neste século XXI, sob o manto da terceirização, certos trabalhadores recebem outra designação – empreendedores – e a partir desse nome pomposo, são obrigados a dispor dos meios de produção se quiserem trabalhar. Na prática, para trabalhar, antes é preciso consumir. É preciso ter dinheiro para adquirir o instrumento que lhe permita trabalhar, sejam o carro, o computador, a bicicleta, a roupa adequada à profissão etc.

Foto: Heloisa Ballarine /Secom

Pode parecer exagero dizer que o vendedor de pipoca tem alguma relação com tais capitais, principalmente com o capital financeiro. Habituamo-nos a pensar no capital financeiro, pela união do capital industrial com o capital bancário, no momento em que a economia tornou-se mais centrada no mercado de ações e no sistema especulativo de créditos, juros e valorizações. O que teria o pipoqueiro a ver com coisas tão grandiosas? Para entender como o pipoqueiro penetra nesse mundo, ou melhor, é por ele invadido, convém lembrar que ao ser convencido da importância de ser um empreendedor, o sujeito é também convocado a formalizar essa condição. A título de prêmios – como se não fosse pagar pela suposta dádiva – ele passará a existir entre as atividades econômicas do Município e ainda terá uma conta bancária. Finalmente, um catão de plástico na carteira! Sente-se um nobre. A seguir, recebe orientações de como adquirir crédito para comprar um carrinho de pipoca mais moderno e, assim, constitui o seu primeiro débito bancário. Quanta honra, ele que só tinha o seu nome na caderneta da bodega do seu Joaquim, aquele português sovina, que não dispensa um centavo, agora vai dever ao banco.

Pois bem, desde que todas as atividades produtivas, rurais e urbanas, passaram a ser financiadas pelos bancos, o pipoqueiro não está isento. Por menor que seja a sua participação, ele é importante para o desenvolvimento econômico. Os juros que são retirados de cada trabalhador fazem parte dos “ativos” a serem comercializados como se fossem mercadorias. Observemos que, embora vendam dinheiro, e com isso ganhem mais que qualquer atividade produtiva, os bancos não fabricam dinheiro. Então, de onde vem o dinheiro que o banco vende ao pipoqueiro, ao motoqueiro, ao taxista? Para muitos trabalhadores, especialmente para os desempregados, que foram obrigados a aderir ao empreendedorismo, não há como escapar das três fases do capitalismo. Antes de garantir a sua sobrevivência, o empreendedor garante o fortalecimento do comércio, através da compra dos instrumentos que precisa para trabalhar. Evidentemente, as vendas no comércio, por sua vez, estimulam a indústria a produzir cada vez mais. Quanto maior o número de entregadores nas ruas, maior a produção de motos, maior o volume de financiamentos. Convenhamos que uns poucos têm alguma poupança, mas o que fazem os que não a têm? Evidentemente, recorrem aos bancos, aos financiamentos. Assim, fecha-se o ciclo dos ganhadores. Ah, esquecemos os impostos a serem recolhidos pelo Estado.

Pois bem, enquanto o capital e o Estado ganham dinheiro, os empreendedores se perguntam como pagar aos fornecedores, ao banco e ao Estado e, por fim, como se fosse a coisa menos importante, como garantir a sua sobrevivência e a de sua família.

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