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10 anos de legalização: maconha derrubou mitos que pautaram debate no Uruguai
Termômetro da Política
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A legalização da maconha, há 10 anos, fez o Uruguai ganhar evidência global como um laboratório para observar os impactos dessa medida, que, até então, nunca tinha sido implementada por um país em nível federal. Quatro anos depois, em 2017, o vizinho sul-americano deu início à comercialização legalizada da cannabis em farmácias, outro movimento pioneiro, registrando compradores e controlando de perto a produção e a venda para fins recreativos e medicinais, por meio do Instituto de Regulação e Controle da Cannabis (IRCCA), órgão criado para se dedicar exclusivamente a esse mercado. 

Maconha é legalizada no país desde dezembro de 2013 (Foto Paulo Pinto/Agência Brasil)

Nesses seis anos de comércio legal de cannabis, mais de 10 toneladas de maconha foram compradas de forma regular nas farmácias registradas do país. Apesar de contabilizar 61 mil pessoas com permissão para a compra, apenas 40% dos registrados efetivamente adquirem a erva, segundo informe do mercado regulado de cannabis, elaborado pelo IRCCA em dezembro do ano passado. A aquisição média por comprador é de 14 a 15 gramas por mês, bem inferior ao máximo permitido, de 10 gramas por semana.

A legalização criou ainda os clubes canábicos, que atualmente são pouco mais de 300 associações com autorização para produzir e distribuir a maconha entre seus 10 mil membros, respeitando um limite de 40 gramas por mês por pessoa. O IRCCA também informa que há 14 mil pessoas autorizadas a cultivar maconha para consumo próprio, com licenças que têm validade de três anos. 

Mesmo assim, o comércio ilegal continua a movimentar mais da metade da maconha consumida no Uruguai, proporção que, apesar de estar em queda, mostra as limitações e dificuldades de avançar com o modelo adotado.

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Outros países e regiões seguiram na mesma direção e optaram por legalizar a cannabis, como o Canadá, a Holanda e diversos estados americanos, como a Califórnia e Nova York.

A política de drogas é um assunto em debate na maioria das democracias das Américas e da Europa. No Brasil, o Supremo Tribunal Federal discute, desde 2015, a descriminalização da posse de drogas para uso pessoal – o que é diferente de legalizar o comércio ou o cultivo da cannabis. O julgamento foi suspenso na última quarta-feira (2) por um pedido de vista do ministro relator, Gilmar Mendes, que pretende aprofundar o voto já proferido e prometeu devolver o processo para julgamento na próxima semana.  Até o momento, quatro ministros – Luís Roberto Barroso, Edson Fachin, Gilmar Mendes e Alexandre de Moraes – votaram a favor de algum tipo de descriminalização da posse de drogas.

Modelo uruguaio

A legalização da maconha no Uruguai se deu a partir da Lei 19.172, que foi discutida e publicada pelo governo de José Mujica, em 20 de dezembro de 2013. O modelo que vigora desde então inclui uma Junta Nacional de Drogas, órgão criado em 1988 e vinculado à Presidência da República, ao qual cabe a responsabilidade pelas decisões que moldam a política nacional de cannabis. Já o IRCCA é um instituto criado com a legalização para exercer as funções de regulador do mercado e de assessor técnico do governo para a implementação da política nacional.

É o IRCCA que emite todas as licenças para produção, pesquisa e comercialização de cannabis no país e também registra os usuários de cannabis para a compra em farmácias, autocultivo e participação em clubes canábicos. 

A partir da lei que legalizou a maconha em 2013, tanto os clubes canábicos quanto o autocultivo se tornaram possíveis no país. Já a venda em farmácia só foi regulamentada em 2017. Para comprar, aderir aos clubes ou ao autocultivo, é necessário ter pelo menos 18 anos, ser cidadão uruguaio e residir no Uruguai. Turistas e imigrantes não têm acesso à maconha legal no país, e os uruguaios devem aderir a apenas uma das três formas de acesso à maconha. 

Antes de a maconha chegar nas 37 farmácias licenciadas, o Estado uruguaio intermedia a comercialização, comprando dos produtores e vendendo para esses estabelecimentos, por meio do IRCCA que, dessa maneira, controla diretamente o mercado, inclusive tabelando os preços.

As concentrações de THC, substância psicotrópica da maconha, também são fiscalizadas, e apenas três tipos de cannabis podem ser cultivados e vendidos: a alfa, a beta, com concentrações menores, e a gamma, um pouco mais concentrada. Os preços variam de R$ 52 a R$ 57 por cinco gramas de maconha, segundo a tabela divulgada para agosto de 2023 e o câmbio peso/real em 1º de agosto.

O IRCCA assumiu a responsabilidade por promover campanhas de conscientização sobre o uso seguro da cannabis e a redução dos seus danos, assim como arrecadar recursos gerados pelo comércio para a saúde pública uruguaia. Em suas ações, o instituto alerta que o uso frequente de cannabis traz riscos à saúde, podendo gerar dependência, danos respiratórios, psicológicos e neurológicos. A droga também limita a capacidade de concentração e os reflexos e é especialmente contra indicada para adolescentes e grávidas. 

Pioneirismo datado

Fundador e primeiro presidente da Câmara de Empresas de Cannabis Medicinal do Uruguai, Marco Algorta acompanhou o debate e a implementação das mudanças legais que criaram o mercado regulado de maconha no Uruguai. Como empresário, ele fundou a Cannapur, uma das primeiras empresas uruguaias do setor, depois comprada pela canadense Khiron Life Science. Ele conta que o modelo adotado pelas leis já surgiu com base em preconceitos e foi impactado por um cenário internacional em que o debate ainda era muito mais tímido. 

“A primeira coisa que a gente tem que pensar é o que era o mundo em 2013, e como ele enxergava a legalização da cannabis em nível federal. O argumento político que se usou naquele momento era ajudar na luta contra o narcotráfico, mas tomando cuidado para não ‘envenenar os nossos jovens’. E o que se percebe é que esses dois preconceitos estavam totalmente errados”, analisa o uruguaio. “Em 2013, ninguém sabia como fazer e o Uruguai teve enormes pressões internacionais para dar para trás na regulação da cannabis e teve que escrever uma lei com todas essas pressões. Esse texto original, que hoje deveria ser revisado, foi a base para a regulamentação no mundo inteiro. Tem um valor histórico muito grande”. 

A opinião de que o modelo precisa ser revisto é compartilhada pelo atual diretor-executivo do IRCCA, Juan Ignacio Tastás, que defende que o aniversário de 10 anos cria um momento propício a esse debate. Em entrevista ao jornal uruguaio La Diaria, em janeiro deste ano, Tastás se disse a favor de que todo o conteúdo da lei fosse revisto.

 “Acredito que havia muitos temores lógicos, porque não havia antecedentes no mundo, mas, hoje, poderíamos começar a flexibilizar alguns temas. Nós, do IRCCA, temos trabalhado em sugestões, que terão que ser analisadas pelo sistema político, para que se decida por que caminho seguir. Por exemplo, se nós, nas farmácias, quiséssemos vender canabidiol puro, não temos hoje essa possibilidade, porque a lei não permite”, disse.

Regulação forte

Apesar dos problemas no acesso ao mercado legal no Uruguai, a proposta de mercado regulado no país tinha a inclusão como aspecto relevante, relembra Marco Algorta. Ele afirma que esse foi um dos motivos para o Estado ter decidido participar de forma tão presente na regulação.

“Desde o primeiro momento, foi uma política contra o mercado. O foco não era desenvolver um mercado capitalista, digamos assim, o foco era fazer o produto chegar a um preço justo às pessoas. O Uruguai controla o preço, o que outros mercados, que legalizaram depois, não fazem. É um preço que não gera grandes ganhos às empresas produtoras. Isso gerou menos oferta, mas, por outro lado, gerou mais acessibilidade. Os preços não são exorbitantes, coisa que não acontece em outros mercados em que a cannabis virou um produto de elite”. 

O controle exercido pela regulação, afirma Algorta, levou a um cenário com apenas três empresas licenciadas para produzir a cannabis, desencorajando novos empreendimentos e excluindo produtores que estavam na ilegalidade no momento da legalização. “O movimento social pré-legalização, que empurrou a legalização, foi excluído dos direitos econômicos da lei. Esse é o grande erro do Uruguai. É muito difícil um produtor pequeno e de pequena capacidade econômica obter uma licença para produzir cannabis no Uruguai. Requer muito capital”.  

Mesmo assim, Algorta avalia que os dados disponíveis após 10 anos da legalização da maconha no Uruguai são positivos, e podem servir de subsídio para o debate no Brasil, se observadas as diferenças entre os dois países. 

“Não se pode extrapolar os números do Uruguai para o Brasil, porque são características populacionais totalmente diferentes. Mas é a legalização que tem uma amostra mais próxima à realidade brasileira. Dos dados que a gente tem disponíveis, é o melhor”, avalia. “A legalização da cannabis não gerou mais problemas com a cannabis. Ela gerou menos danos com a cannabis. 50% da população está consumindo um produto que é controlado pelo Ministério da Saúde Pública, com menos pesticidas e contaminantes. E existe uma melhor relação dos jovens com a substância”. 

Além da legalização para usos recreativos e medicinais, há uma demanda de legalização para o desenvolvimento de uma indústria do cânhamo – cannabis com baixa concentração de THC a ponto de não ser mais psicotrópica. Esse produto é usado pela indústria farmacêutica, para a produção do canabidiol, e também por diversos outros setores, como cosmético, têxtil e construção civil.

O presidente da Associação Nacional do Cânhamo Industrial, Rafael Arcuri, acredita que países que legalizaram a cannabis depois do Uruguai se beneficiaram dos dados observados na experiência pioneira e puderam partir para modelos menos restritivos de legalização. Para ele, esse também deve ser o tom para a discussão do tema no Brasil. 

“O ideal são modelos com um equilíbrio racional entre controle e o acesso. A gente tem que sempre tratar essa planta como psicotrópica, mas a gente não pode ser hipócrita e ignorar que ouas substâncias mais nocivas têm regulações muito mais simples”, afirma.

“Além de ser essa fonte de insumo medicinal e farmacêutico de origem vegetal, o cânhamo tem esse potencial de industrialização, com bioplásticos, alimentos etc. Além disso, a cannabis é uma das plantas mais eficientes na captação e aprisionamento do CO2 da atmosfera. É uma planta importante para a reindustrialização que o Brasil está tentando fazer, e para a mitigação das mudanças climáticas”. 

Fonte: Agência Brasil

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