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Assusete Magalhães se despede do STJ com legado na jurisprudência e na gestão de precedentes
Termômetro da Política
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Após quase quatro décadas de dedicação ao Poder Judiciário, a ministra Assusete Magalhães se aposenta nesta segunda-feira (15). Nos 11 anos que passou no Superior Tribunal de Justiça (STJ), a magistrada foi responsável por importantes contribuições para a jurisprudência – sobretudo em matérias de direito público – e para a gestão de precedentes, tendo integrado, desde 2017, a Comissão Gestora de Precedentes e de Ações Coletivas (Cogepac), cuja presidência assumiu a partir de maio de 2023. Ela foi, também, a primeira mulher a dirigir a Ouvidoria da corte.

Assusete Magalhães foi nomeada em agosto de 2012 para o STJ pela presidente Dilma Rousseff (Foto: Rafael Luz/STJ)

A paixão pelo direito e a determinação com que a perseguiu impulsionaram sua trajetória pessoal e profissional. Nascida em Serro, cidade mineira a 228 km de Belo Horizonte, Assusete Magalhães passou a infância em meio às belezas naturais e ao rico patrimônio histórico-cultural daquela região. O seu passatempo predileto, porém, era ouvir as sessões do tribunal do júri que ecoavam na praça em frente ao fórum. Foi ali – inspirada pela oratória dos advogados – que surgiu o sonho de ser juíza. Pouco tempo depois, sem que a mãe soubesse, decidiu prestar o vestibular para a faculdade de direito.

“O destino natural da mulher, naquela ocasião, concluído o ensino médio, era o casamento. Não havia opção. Minha mãe tomou ciência da aprovação através dos jornais”, revelou a ministra em entrevista ao programa 3 e UMA, produzido pela Coordenadoria de TV e Rádio do STJ (CRTV).

A distância da família e o pioneirismo na Justiça Federal

Aprovada na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), enfrentou a resistência familiar até se mudar para Belo Horizonte, onde também fez o curso de letras, na mesma instituição, e deu início à carreira na advocacia.

Logo em seguida, foi empossada como procuradora do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS). A partir de 1982, integrou o Ministério Público Federal, no qual atuou como procuradora da República. Em 1984, tornou-se a primeira mulher a tomar posse no cargo de juíza federal em Minas Gerais e a integrar o Tribunal Regional Eleitoral do estado.

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Nesse período, Assusete experimentou o que ela define como um dos momentos mais difíceis de sua vida: para virar juíza titular, transferiu-se para o Rio de Janeiro e teve de passar longos períodos afastada do marido e das filhas, na época com apenas dois e quatro anos.

Um trecho do romance Grande Sertão: Veredas, do também mineiro Guimarães Rosa, poderia representar essa fase crucial. Na obra, o autor reflete sobre os desafios impostos pela vida com a seguinte conclusão: “O que ela quer da gente é coragem”. Assusete sabia disso e seguiu em frente.

Após quase dez anos, já de volta a Minas como juíza titular, foi promovida por merecimento ao Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF1), onde exerceu a função de corregedora-geral da Justiça Federal de primeiro grau e foi a primeira mulher – e única até o momento – a ocupar a presidência.

Trajetória no STJ teve início nos colegiados de direito penal

Em agosto de 2012, Assusete Magalhães foi nomeada para o STJ pela presidente Dilma Rousseff, assumindo na corte a cadeira número 23, que já foi ocupada pelos ministros Aldir Passarinho Junior e José de Jesus Filho (falecido).

Em seus primeiros tempos no Tribunal da Cidadania, integrou a Sexta Turma e a Terceira Seção, colegiados especializados em direito penal. Em fevereiro de 2014, passou a trabalhar com direito público na Segunda Turma e na Primeira Seção, tendo presidido os dois colegiados.

Paralelamente à atividade jurisdicional, a ministra foi conselheira do Conselho da Justiça Federal (CJF) e presidiu a 1ª Jornada de Direito Administrativo, organizada pelo Centro de Estudos Judiciários (CEJ/CJF) em agosto de 2020, que analisou 743 propostas de enunciados – um recorde nas jornadas de direito promovidas pelo CJF.

Ouvidoria das Mulheres e o combate à violência de gênero

Assusete Magalhães também foi a primeira mulher a chefiar a Ouvidoria da corte, entre 2019 e 2020. O período foi marcado pela assinatura de acordos de cooperação com as Ouvidorias do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) e da Controladoria-Geral da União (CGU), fundamentais para aperfeiçoar o atendimento ao cidadão no momento mais agudo da pandemia da Covid-19.

Nesse mesmo contexto, diante do crescente número de casos de violência de gênero, a criação da Ouvidoria das Mulheres foi outra iniciativa inovadora liderada pela ministra. Além de contribuir para a formulação de políticas de fomento à participação feminina e de combate à violência, o canal de comunicação fornece orientação médica e psicológica a servidoras, estagiárias e prestadoras de serviços do tribunal.

Precedente qualificado como pauta de conduta para a sociedade

Presidindo a Cogepac a partir de maio de 2023, após o falecimento do ministro Paulo de Tarso Sanseverino, Assusete Magalhães deu continuidade ao trabalho de seu antecessor no aperfeiçoamento da gestão de precedentes e no estímulo ao julgamento dos recursos repetitivos.

Em entrevista ao portal do STJ, a ministra observou que o trabalho desenvolvido na comissão se reflete não apenas na esfera judicial, mas também na própria sociedade, que passa a ter acesso a soluções claras para conflitos que seriam resolvidos, em regra, pela via judicial. Na entrevista, ela também falou sobre o acordo de cooperação assinado com a Advocacia-Geral da União (AGU) em 2020, que permitiu que mais de 2,3 milhões de processos fossem alvo de ações de desjudicialização.

Até outubro deste ano, Assusete Magalhães foi responsável por 183.434 julgamentos na corte, incluindo decisões monocráticas e acórdãos de sua relatoria. Alguns dos julgados mais importantes de sua extensa contribuição para a interpretação das leis federais estão destacados abaixo, envolvendo temas como meio ambiente, tributos, previdência social e improbidade administrativa.

Auxílio-acidente deve começar no dia seguinte ao fim do auxílio-doença

De acordo com Bianca Barbosa Heringer, chefe de gabinete de Assusete Magalhães, uma das teses mais representativas da atuação da magistrada na corte foi fixada no julgamento do Tema 862 dos recursos repetitivos.

Em julho de 2021, a Primeira Seção definiu que o marco inicial do auxílio-acidente deve recair no dia seguinte ao da cessação do auxílio-doença que lhe deu origem, como determina o artigo 86, parágrafo 2º, da Lei 8.213/1991, observando-se, se for o caso, a prescrição quinquenal de parcelas do benefício.

“A controvérsia se repetia em muitos casos e havia um grande intervalo entre o término do auxílio-doença acidentário e o ajuizamento da ação que pedia a concessão do auxílio-acidente”, comentou a chefe de gabinete.

Essas circunstâncias – continuou Bianca – levavam a decisões judiciais que prejudicavam o segurado, pois o início do auxílio-acidente era fixado na data da citação ou da juntada do laudo médico-pericial aos autos, mesmo que esse laudo remetesse a redução da capacidade laborativa à data do fim do anterior auxílio-doença acidentário.

“Nesse voto, a ministra ressaltou que a demora no ajuizamento da ação não altera o termo inicial do auxílio-acidente precedido de auxílio-doença, implicando apenas a prescrição quinquenal de parcelas do benefício”, relembrou Bianca.

Obrigação da União em reparar danos ao patrimônio cultural

Em agosto de 2023, a Segunda Turma, sob relatoria da ministra Assusete, definiu que a União tem responsabilidade solidária por omissão na tutela de patrimônio cultural cedido, mas função subsidiária na reparação de eventual dano. Para o colegiado, esse entendimento prioriza a obrigação de quem deu causa direta à má conservação do bem, sem deixar de oferecer mais de uma possibilidade para a reparação do direito difuso (REsp 1.991.456).

Na origem do caso, o Ministério Público Federal e o Ministério Público de Santa Catarina ajuizaram ação civil pública contra a União, o município de Criciúma (SC) e o Departamento Nacional de Produção Mineral (DNPM) para cobrar medidas de proteção e restauração do Centro Cultural Jorge Zanatta. O imóvel pertence à União e foi tombado em 2007 como patrimônio histórico e cultural do município catarinense, que detém a respectiva cessão de uso.

A relatora apontou que a solução da controvérsia passava por critérios já consolidados na jurisprudência, expressos na Súmula 652 do STJ. Em sentido diverso, o acórdão do Tribunal de Justiça de Santa Catarina (TJSC) definiu a responsabilidade solidária a partir de uma suposta semelhança do caso com processos em que se pede o fornecimento de medicamentos gratuitos por entes públicos.

Assim – prosseguiu a ministra –, em caso de omissão no dever de fiscalização, a responsabilidade civil ambiental solidária da administração pública é de execução subsidiária (ou com ordem de preferência).

Comprador de área degradada também responde pelo dano ambiental

No mês seguinte, a ministra foi a relatora do Tema 1.204 dos repetitivos, no qual a Primeira Seção definiu que as obrigações ambientais possuem natureza propter rem, sendo possível exigi-las do proprietário ou possuidor atual, de qualquer dos anteriores ou de ambos, “ficando isento de responsabilidade o alienante cujo direito real tenha cessado antes da causação do dano, desde que para ele não tenha concorrido, direta ou indiretamente”.

Segundo Assusete Magalhães, esse entendimento já estava consolidado na Súmula 623, que se baseou na jurisprudência segundo a qual a obrigação de reparação dos danos ambientais é propter rem, uma vez que a Lei 8.171/1991 vigora para todos os proprietários rurais, ainda que não sejam os responsáveis por desmatamentos anteriores.

A relatora explicou que o atual titular que se mantém inerte diante da degradação ambiental, ainda que pré-existente, comete ato ilícito, pois a conservação das áreas de preservação permanente e da reserva legal são imposições genéricas, decorrentes de lei.

“De outro lado, o anterior titular de direito real que causou o dano também se sujeita à obrigação ambiental, porque ela, além de ensejar responsabilidade civil, ostenta a marca da solidariedade”, explicou a relatora.

Afastada execução contra gerente que não deu causa à dissolução irregular

Em outro julgamento de repetitivo, a Primeira Seção, sob relatoria da ministra Assusete Magalhães, definiu que o “redirecionamento da execução fiscal, quando fundado na dissolução irregular da pessoa jurídica executada ou na presunção de sua ocorrência, não pode ser autorizado contra o sócio ou o terceiro não sócio que, embora exercesse poderes de gerência ao tempo do fato gerador, sem incorrer em prática de atos com excesso de poderes ou infração à lei, ao contrato social ou aos estatutos, dela regularmente se retirou e não deu causa à sua posterior dissolução irregular, conforme o artigo 135, III, do Código Tributário Nacional (CTN)“.

Com esse entendimento, o colegiado negou a pretensão da Fazenda Nacional, que sustentava a possibilidade de redirecionamento da execução fiscal contra o sócio que exercia a gerência ao tempo do fato gerador do tributo, mas se retirou da empresa antes de sua dissolução irregular.

A relatora do Tema 962 invocou a Súmula 430 do STJ, a qual explicita que a simples falta de pagamento do tributo não acarreta automaticamente a responsabilidade do sócio prevista no artigo 135 do CTN.

Competência para julgamento de causas que envolvem matrícula de crianças e adolescentes

Também no rito dos recursos repetitivos (Tema 1.058), a Primeira Seção fixou que “a Justiça da infância e da juventude tem competência absoluta para processar e julgar causas envolvendo matrícula de menores em creches ou escolas, nos termos dos artigos 148, IV, e 209 da Lei 8.069/1990″ (Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA).

Em seu voto, Assusete Magalhães ressaltou que o STJ, ao apreciar casos relativos à saúde e à educação de crianças e adolescentes, firmou entendimento pela competência absoluta do juízo da infância e da juventude para processar e julgar demandas que visem proteger seus direitos individuais, difusos ou coletivos, independentemente de estarem em situação de risco ou abandono.

“A interpretação dos artigos 148, IV, e 209 da Lei 8.069/1990 impõe o reconhecimento da competência absoluta da vara da infância e da juventude, em detrimento da vara da fazenda pública, para processar e julgar causas envolvendo matrícula de crianças e adolescentes em creches ou escolas, independentemente de os menores se encontrarem em situação de risco ou abandono, tal como previsto no artigo 98 da referida lei”, afirmou.

Ressarcimento ao erário em ações de improbidade

Ao julgar três processos sob o rito dos repetitivos, a Primeira Seção decidiu que a prescrição das demais sanções não prejudica o pedido de ressarcimento ao erário em ação de improbidade administrativa. O julgamento consolidou a jurisprudência do STJ, segundo a qual a ação pode prosseguir para buscar o ressarcimento mesmo que as outras sanções estejam prescritas (Tema 1.089).

Relatora dos recursos, Assusete Magalhães explicou que a obrigação de ressarcimento integral do dano causado ao patrimônio público, ressaltada no artigo 12 da Lei 8.429/1992, sempre será imposta em conjunto com alguma das demais sanções previstas para os atos ímprobos nos incisos I, II e III do dispositivo.

Como consequência, a relatora destacou que é lícito ao autor da ação cumular o pedido de ressarcimento dos danos ao erário – que é imprescritível, de acordo com entendimento do Supremo Tribunal Federal (STF) – com o de aplicação das demais sanções previstas no artigo 12 da Lei de Improbidade (REsp 1.899.407REsp 1.899.455 e REsp 1.901.271).

Valor de caução na concorrência para venda de imóveis

Em outubro de 2019, o voto de Assusete Magalhães foi vencedor no julgamento do REsp 1.617.745, considerado o leading case da interpretação do tribunal sobre o artigo 18 da Lei 8.666/1993, a antiga Lei de Licitações.

A Segunda Turma entendeu que, na concorrência para a venda de imóveis, a administração pública não poderia fixar um valor de caução diferente do estipulado no artigo 18 da lei, de 5% da avaliação. O caso em julgamento tinha grande repercussão social, por se tratar da licitação do terreno ocupado por quiosques da Feira dos Importados de Brasília, que substituiu um “camelódromo”.

O colegiado reconheceu a nulidade da cláusula do edital que estabeleceu a caução em 1% do valor do imóvel, mas, seguindo o voto de Assusete Magalhães, concedeu à Cooperativa dos Empreendedores, representante dos ocupantes da área, a oportunidade de complementar a caução, mantendo os demais atos da licitação não contaminados pelo vício.

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