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Vereadores confrontam a Constituição com projetos para inserir a Bíblia no ensino público
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Vereadores de pelo menos 13 capitais brasileiras têm apresentado projetos de lei que buscam inserir a Bíblia nas bibliotecas de escolas públicas e privadas ou permitir seu uso como material de apoio pedagógico. As propostas, que incluem desde a criação de “intervalos bíblicos” até a autorização para cultos religiosos voluntários nas instituições de ensino, são consideradas inconstitucionais por especialistas consultados. As propostas ferem a legislação federal, visto que a laicidade é prevista na Lei de Diretrizes e Bases (Lei 9.394/1996), assim como a Constituição Federal proíbe, em seu artigo 19, que o poder público incentive manifestações religiosas.

Constituição Federal proíbe que União, estados e municípios adotem a Bíblia nas escolas (Foto: ieuz/Flickr)

Em São Luís, uma das proposições prevê a criação de “espaços para meditação religiosa”, enquanto outra autoriza a realização de cultos e ritos religiosos voluntários nas escolas. Já em Belo Horizonte, a Câmara Municipal aprovou no mês passado projeto que libera o uso da Bíblia como material de apoio. A autora da proposta, Flávia Borja (DC), defende que a medida não fere a laicidade do Estado, argumentando que nenhum aluno será obrigado a participar das atividades. “A Bíblia é o livro mais lido, mais vendido e mais publicado em todo mundo”, justificou a vereadora. O texto agora aguarda sanção do prefeito Álvaro Damião (União).

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Em Florianópolis, o vereador João Padilha (PL), autor de projeto semelhante, afirma que a preocupação é “garantir a proteção jurídica aos professores e diretores que querem usar a Bíblia nas escolas”. Ele ressalta que 70% da população se declara cristã e que a proposta está sendo bem avaliada pela Comissão de Educação da Câmara. Na mesma linha, Cézar Leite (PL), vereador em Salvador, defende que os intervalos bíblicos podem fomentar a cultura de paz e diminuir casos de bullying. “Vivemos em um Brasil muito estranho. Às vezes, o óbvio precisa ser defendido”, declarou, referindo-se ao que chama de “direito do cidadão de professar sua fé”.

Especialistas, no entanto, apontam que as propostas violam claramente o princípio constitucional da laicidade do Estado e a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Ângela Sogilo, doutora em psicologia e professora da Unicamp, argumenta que “levar uma vertente de pensamento que não é baseada na ciência, que é uma interpretação de mundo, não cabe” no ambiente escolar. João Marcelo Borges, consultor sênior de educação da União Europeia, vê nas iniciativas parte de um movimento mais amplo de influência religiosa na educação, comparável a propostas como o Escola sem Partido e a militarização das escolas.

“A leitura de um trecho bíblico não favorece em nada o desenvolvimento. Pelo contrário, o texto religioso, seja qual for, se baseia em dogmas, ele não favorece aquilo que é função da escola, que é o desenvolvimento do pensamento crítico e emancipado. […] A escola pública não pode ser terra de ninguém. Ela se orienta pelos princípios constitucionais, e isso deve ser preservado”, afirma Ângela Sogilo, professora sênior na Unicamp.

O STF já se manifestou contra leis semelhantes no passado. Em 2021, declarou inconstitucional uma legislação de Mato Grosso do Sul que tornava obrigatória a disponibilidade de Bíblia nas escolas. No ano seguinte, a Justiça da Paraíba julgou inválida lei de Campina Grande que sugeria a leitura do livro sagrado nas instituições de ensino. Em Pernambuco, o Ministério Público abriu procedimento para evitar “excessos” em propostas do gênero.

A maioria dos vereadores que apresentam projetos com teor religioso tem ligações com igrejas evangélicas ou católicas. O próprio Cézar Leite admitiu: “Se alguém me falar que o pessoal do Islã quer um espaço no intervalo da escola, eu vou dizer: ‘faz um espaço’. Mas eu sou cristão”. A declaração ilustra a tensão entre a defesa da liberdade religiosa e o risco de privilegiar determinadas crenças em detrimento de outras no ambiente escolar público.

Enquanto as propostas avançam nas câmaras municipais, especialistas alertam para os impactos práticos nas salas de aula. Borges questiona como os professores, que já enfrentam dificuldades para cumprir o currículo obrigatório, lidariam com a pressão para incluir a Bíblia em suas aulas. “É uma proposta que não entende a educação nem como fazê-la com qualidade e que desrespeita os professores”, concluiu o consultor.

“Colocar a Bíblia como material didático pode ser o primeiro movimento cujo próximo passo é inserir o criacionismo [tese de que o Universo foi criado por uma intervenção divina] no ensino da biologia. Todos nós queremos reduzir o bullying dentro das escolas, mas essa proposta não traz evidência nenhuma de que contribua para o fim da violência”, explica João Marcelo Borges, consultor sênior da União Europeia.

Com informações do portal UOL.

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