Me acordo cedo como de costume. Levemente me esforço para me sentar na cama. Meu corpo oraliza meu silêncio. Ponho os pés no tapete que asseguram passos que me carregam ao banheiro. Chego à pia, a água se joga no meu rosto. Rosto molhado, passo a mão esquerda de cima para baixo inclinadamente, para, logo em seguida, passar a mão direita também do mesmo jeito, agora do lado oposto, como se fosse mãos parabrisadas.
Mãos passadas no rosto. Visualizo lerões na testa, pálpebras caídas, bochechas pesadas, olhos que me olham no espelho que me espantam. Me fazendo correr de mim mesmo. Me estrangeirizo. Bato duas vezes as palmas das minhas mãos nas bochechas. A cara se avermelha. E o espelho me aprisiona de vez no seu retângulo que degola o pescoço engelhado. Parado, procuro o resto do meu corpo.
Chuveiro-me. Olho para os meus pés, toco minhas pernas, sinto meu ventre, banho meus braços, meu dorso, abraço-me todo, volto a existir. Entoalhado, seco-me. Apressadamente sou vestido para tomar uma xícara de café. Rasgo caninamente um pão. Corro para o ponto de ônibus. Um adolescente se olha no reflexo do vidro de um carro estacionado, ajeitando seu cabelo de corte de juvenil. Uma adulta, jovem, também se reflete na tela de seu celular. Ambos fazem uma espécie de teste, caretando-se: olhando seus retratos, ajustando detalhes de seus cabelos, cílios, boca, mostrando seus dentes.
O coletivo chega. Todos entram. Sento-me ao lado de um rosto durante o itinerário. Ele se mascara lindamente. Os solavancos não interferem no seu acabamento. O espelho não cai de sua mão. O ser sai com outro rosto como se estivesse em fuga. Talvez para o mundo do trabalho, escravizando-se. Aprisionando esse outro corpo.
Desço do ônibus. Dois seres se olham no reflexo do espelhamento no prédio de escritórios: ajeitam o corpo, as roupas, o andar, o perfil. Eles olham para o lado, em perpendicular, esquecendo o caminho. Eles se brilham nas janelas envidraçadas.
Entro no elevador, o espelho toma conta de seu interior, se movimentando num sobe-e-para-e-sobe-e-para, para depois voltar num desce-e-para-e-desce-e-para. Cheio, o elevador fica cego. Ele não se enxerga na opacidade dos corpos espremidos. Ninguém se vê também. Cansados pelo toque repetitivo do reflexo, todos se perdem no primeiro embotamento do espelho. E buscam o encontro no protocolo dos cumprimentos matutinos