Adquiri minha dezena de bananas semanal na Feira Central e, enquanto subia a Vila Nova da Rainha, já voltando para casa, fui respeitosamente abordado por uma distinta senhora, que, para fins literários, chamarei de Emily. Ela me disse que se lembrava de mim da campanha à prefeitura em 2020, de um evento num Clube de Mães. Contou, entre suspiros de gratidão, que eu a ajudara com uma orientação jurídica sobre a saúde do seu bebê e, por isso, decidira me honrar com seu voto.
Agradeci pelo sufrágio (sempre um afago na alma deste escriba esses reconhecimentos espontâneos) e, curioso, perguntei pelo filho, que, segundo ela, agora era uma criança saudável e arteira. Eu, orgulhoso como se fosse padrinho do moleque, ofereci-lhe algumas castanhas que carregava numa sacola paralela à das bananas, enquanto ouvia seu relato. Foi então que ela me convidou para conhecer o estabelecimento ao lado, o Fátima’s Bar, de onde, revelou, tirava seu sustento, agora sob nova direção e com promessas de futuro ambiente familiar.
Naturalmente, como bom campinense, nascido e criado entre o Ponto de Cem Réis e a Praça da Bandeira, sempre soube da lendária reputação do lugar: ícone absoluto do submundo local, oásis recreativo da classe operária oprimida de segunda a sexta pela escala 6 x 1, mas que, nos sábados e domingos, extravasa “as mágoas” com uma Brahma gelada, um show de Zezo no YouTube e uma fava ou tripa sequinha de tira-gosto.
Aceitei o convite de Emily. Afinal, creiam ou não, eu nunca havia adentrado naquele reduto cravado na carne viva do centro da cidade. (Não sou pudico, mas Jojó, em Lagoa de Roça, parece que fechou faz tempo). Resolvi que seria uma boa oportunidade para aprimorar meu lado sociólogo de botequim e fazer uma etnografia do baixo meretrício. O campo empírico, patrimônio tombado pela putaria informalizada e quartel-general da lascívia socialmente tolerada, me faria sentir um verdadeiro Villas Bôas da Shopee, ou um tropeiro fake das Ciências Sociais, na rua que fundou Campina Grande.
Entrei com bloquinho mental na mão, pronto para anotar qualquer movimento suspeito, com a certeza de que encontraria ali mais verdades do que em muitas dissertações de mestrado e teses de doutorado. Queria observar, escutar, registrar. Uma etnografia sensorial, como diria Clifford Geertz, só que, ao invés de especiarias orientais, o cheiro predominante era de Pitu, cigarro Gift e perfume adocicado comprado numa das barracas da feira.
Minha hostess, solícita e com sorriso de quem conhece segredos de Estado, abriu os braços:
— Entre, fique à vontade. Aqui todo mundo é igual… até o momento de pagar.
Sentamos numa mesa lateral, pedimos duas geladas e logo fomos abordados por uma colega de Emily, que chamarei de “Joelma do Cariri”, com suas longas madeixas aloiradas e encaracoladas inspiradas na estrela paraense. Ao tempo em que tomávamos as cervejas, fui logo perguntando sobre a fama dos frequentadores e, sem cerimônias, ela nos falou de algumas práticas que fariam Durkheim repensar suas teorias sobre anomia.
— Tem um político aí, desses que fala de “família” no palanque, que de vez em quando aparecia por aqui pedindo umas coisas que a esposa não queria fazer.
— Como era isso, minha filha? — perguntei, fingindo normalidade de repórter investigativo.
— Eu enfiava o braço até o cotovelo no fiofó dele. Às vezes, ele chorava. Outras, miava como os gatinhos na feira de carnes.
Anotei mentalmente: “Moralidade pública e prazer privado: o conflito entre ethos conservador e pulsões marginais.” Foucault, certamente, daria uma piscadela cúmplice diante dessa cena.
Em seguida, chegou outra distinta senhora, com cílios que faziam sombra própria, como uma “Cher da Borborema”, e nos relatou sobre um empresário endinheirado que só chegava ao êxtase enquanto era montado como um cavalo de vaquejada.
— Ele implorava: ‘Me ensina a sentar, professora! Ensina!’
É como se Paulo Freire tivesse escrito o Kama Sutra, pensei eu. Ali estava Bourdieu também, entre um tapa e um gemido: o capital simbólico de quem comanda empresas e, à noite, entrega seu corpo ao saber carnal da periferia. Uma inversão das hierarquias sociais por meio da performance, como um baile de máscaras, só que sem máscara.
Depois, o ponto culminante dessa etnografia da devassidão, foi a história sobre um determinado casal religioso. Rostos de quem prega “graça e paz” no domingo, libido de quem “acha graça e pá!” no sábado. Pediam sempre “um lanchinho” com uma das meninas: bolovo, kitute e uma Coca-Cola (porque esse pessoal é abstêmio, né?), e depois partiam para o swing cristão. Anotei no meu bloquinho imaginário: um discipulado do prazer.
Saí de lá sem tocar em ninguém, mas fui tocado na alma. Paguei, claro, pelos relatos das minhas novéis amigas, afinal, tomei o tempo delas para minha incursão etnográfica. Eram todos como aqueles que Howard Becker chamaria de “outsiders”, os “desviantes”, os que estão fora da norma, mas que produzem suas próprias éticas e regras. E, como bem ensinou Erving Goffman, ali ninguém era só o que parecia ser: eram performances, identidades encenadas num palco de luz baixa e gemido incontido.
Eu, etnógrafo de ocasião, distribuí minhas bananas com os presentes, saí com a que me restou, sem descascá-la, e concluí: o Brasil profundo certamente não cabe em artigo de revista científica, mas cabe todinho num boteco com pole dance, Pitu, cerveja e Gift, tal qual o antebraço de Joelma do Cariri, onde melhor aprouver à clientela.