Graduado em Letras e Direito e mestre em Organizações Aprendentes pela UFPB
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Por fora dos mundos
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(Imagem: Grok)

Encabeçando uma fileira de onze irmãos, fora quatro que não vingaram, como se fossem frutos de uma procriação, Carminha contrariou evidências demográficas, quase científicas, e veio ao mundo gerada por um amor romântico, seu pai fora deserdado por se amigar com uma moça que vestia chita. Ela gostava de ler e nasceu no ano da morte do fundador da Academia Brasileira de Letras, mas preferia mesmo as pornochanchadas.

Sua amiga, Carmesita, sempre defendia Carminha, não que gostasse dela, mas porque a admirava. Na verdade, existia muito sentimento na fruição da convivência das duas, empanado pela repressão ao mundo das curiosidades. Poderia ser um amor, mas o amor era algo muito abstrato entre quem se alinhavava numa máquina de costura e quem agia no mundo sem a companhia de um homem. Carmesita dizia com vigor: Quem quiser que fale de Carminha, eu não! Ela é destemida, firme, teimosa, abusada e caminha por fora dos mundos. Se enrualiza facilmente, inveja-me. Linda mesmo!

Carminha vivia o tempo sem a necessidade de se embalsamar na cronologia dos calendários. Ela promovia suas festas sem se ombrear nos carnavais, nas páscoas, nos são joãos, nos natais, nas viradas de ano, nas quermesses, nos aniversários, nos dias disso ou daquilo. Enfrentava o tempo sem temê-lo, sem esquartejá-lo em horas e minutos. Muito menos em dias de santo. Vivia vivendo. Sua vida era um percurso. Um rio sem uma boca de mar. Ria suas alegrias se alegrando e chorava suas tristezas se entristecendo. Resistia à compressão dos tempos, afirmando a força do presente como um elástico que prende e solta, musicalizado por uma sanfona que vai e vem num movimento de onda que não para nunca. Para ela, o tempo se materializava num fluxo tunelizado. Não existia porta da frente nem porta dos fundos, existiam portas. Portas para serem entradas e saídas, vazadas.

Ela resistia a todo tipo de aprisionamento. Namorou muito. Conheceu o sexo mais ainda: de cima pra baixo, de baixo pra cima. De corpo inteiro. Ria no gozo, mangando da seriedade. Dizia que o corpo tem a pele como suporte da sensualidade, que nos denuncia para o mundo com arrepios, vermelhidões, enrijecimentos e contrações para relaxar seus orifícios, expondo suas saliências em forma de botões que ligam sons, gostos e cheiros ao toque da brisa passante. Ela dizia com a boca cheia de saliva: adoro ser chamada de gostosa!

Carminha não teve filhos. Nenhum vigou. Foi noiva duas vezes sem chegar ao cartório. Dizia que o casamento era um ato econômico que servia para diminuir a pobreza. Por isso era feito para pessoas pobres ficarem menos pobres. E que os ricos casavam para viverem em poligamia e poliandria sequenciais, assim casavam e descasavam e casavam e descasavam. Ela se espantava porque os pobres que fazem como os ricos são mal vistos.

Ela era pobre, e como vivia no mesmo espaço com seu irmão e sua cunhada, já estava menos pobre. Então, não precisava casar. Afinal, para que comprimir o tempo e o espaço em torno de um homem doméstico? Ela desejava mais, pelo menos um pouco mais. Era plúrima e comunal. Os adolescentes gostavam de ver aquele vestido na beira do campo, esvoaçante, como se bailarina fosse. Era linda demais!

Carminha também gostava de futebol e morreu quando o Flamengo foi campeão mundial, mas seu time querido era o Teimoso Futebol Clube.

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Palavras-chave
crônica