Os cabelos longos, loiros e lisos caiam como sedosos e volumosos fios de ouro sobre suas costas. Dorso alvo de textura macia, polvilhado de pequenas sardas que lhe davam um charme quase infantil, de ninfeta. Nua sobre a cama, Thamires tem o rosto colado ao colchão, seus olhos estão distantes, olhos escuros que contrastam com a brancura de sua pele. Seu corpo desenha curvas generosas. É como se ela tivesse sido esculpida por um mestre grego, uma Vênus nua. De formas simétricas e voluptuosas. O bumbum delineia um relevo empinado e curvilíneo que se encaixa com destaque naquele corpo de traços e curvas harmoniosas. Por um instante ela esquece a rotina sufocante do trabalho que tem consumido sua jovem vida. Abandonada sobre a cama, tendo a companhia apenas da sua nudez, Thamires lembra do rosto de Bruno. Aquele rosto como que se desenha em sua memória. Era ele mesmo, ainda estava lá, ocupando algum lugar de sua memória afetiva. Thamires era uma bela mulher, seus traços físicos generosos atraiam olhares. Os homens a desejavam, seu corpo era um convite ao sexo. Todo e qualquer homem, de todas as idades, ao se deparar com a visão daquele corpo, como que sentia um súbito desejo de descobrir os prazeres e delícias ali insculpidos. Prazeres e delícias que saltavam aos olhos, um gozo visual que se expressava no andar, em cada movimento equilibrado, harmonioso, mas de um significado erótico que as roupas, que cobriam aquele corpo, não podiam esconder. Antes, eram mesmo um realce, que seduzia a imaginação dos homens de olhares sedentos que diante dos traços e curvas de Thamires eram como marinheiros perdidos pela sedução do canto da sereia.
As mulheres não a ignoravam. Também sobre ela lançavam seus olhares. Mas se Thamires tinha o poder de despertar tais paixões visuais nos homens, nas mulheres despertava mesmo era a inveja e desdém. Quando passava pelas ruas ou mesmo em busca de emprego logo ouvia aqueles tiritar de grilos ao seu redor. Sentia o veneno inoculado em seu encalço. Suas curvas despertavam paixões. Thamires vivia em uma pequena casa, de um conjunto habitacional no bairro de Severino Cabral em Campina Grande. Uma casinha minúscula que mal cabia pensamento e que ela dividia com a mãe, uma mãe simples, zelosa e responsável que vivia uma existência integralmente doméstica; e mais uma irmã, sem os dotes generosos de Thamires, mas justa e de caráter, como, aliás, era a sua família. Uma casa simples e limpa, de mobília humilde e austera. Assim, Thamires vivia desde sempre quando seu pai, um sargento da Polícia Militar, encantou-se por aquela loira, baixinha e viçosa que fora sua mãe na juventude e daquela união, que nunca se formalizou, nasceram ela e a irmã. Daqueles tempos em que sua família tinha uma presença masculina, ela não guardava boas recordações. Thamires, quando criança, era uma menina loira, gordinha e assustada com os rompantes de um pai bêbado, raparigueiro e violento que, invariavelmente, trazia consigo aquele terror noturno, protagonizando cenas que sua memória empurrou para o seu porão afetivo. Imagens de uma meninina chorosa que se entrelaçava entre o pai violento e a mãe amedrontada que também chorava para não apanhar. Assim foi sua infância de menina pobre que tinha na figura masculina do pai um estúpido que satanizava sua existência.
Um certo dia, ele foi embora, atrás de um rabo de saia em João Pessoa. O pai de Thamires era um homem de famílias, tinha várias. Sempre, de tempos em tempos, constituía uma, como para povoar o solo paraibano de mais vidas e aventuras burlescas. Ela, a mãe e a irmã não sentiram falta, antes sentiram mesmo foi um alívio ao ter devolvidas suas vidas usurpadas por aquelas brigas e ameaças. Desde então, Thamires cultivava uma certa desconfiança em relação aos homens. O que ficou mais forte quando seu corpo se metamorfoseou naquela ninfa grega. Uma aparência que ofuscava tudo ao seu redor. Era mesmo como um diamante a brilhar em meio à escuridão que era aquele lugar, aquela paisagem que ela habitava. Se normalmente seu corpo despertava desejos, ali, naquele bairro, naquela comunidade ela era mesma uma atração: uma deusa desterrada naquele fim de mundo. Sua beleza, entretanto, estava mais para o voluptuoso do que para a doçura. Seu rosto não expressava uma beleza angelical, o que a destacava mesmo eram aquelas curvas desejáveis. E foi isso que despertou o desejo de Bruninho, o filho único de um casal de médicos e estudante de engenharia de materiais da Universidade Federal. Um jovem bonito, bem nascido, com dinheiro e carro. O sonho de consumo das garotas universitárias que, no entanto, caiu de quatro por aquela loira de corpo escultural que no primeiro olhar arrebatou seus desejos. Ficou surpreso ao saber que aquela Afrodite em forma de mulher não era universitária, nem mesmo era como aquelas garotas com quem ele normalmente saía e frequentava os motéis da cidade. Era uma menina pobre que vivia uma vida humilde em um bairro periférico. Ele, entretanto, queria namorá-la, sentiu nela mais que o puro desejo do sexo. Ela o despertava para algo mais que o desejo carnal, aquela alma de menina desencadeava nele um sentimento estranho que o fazia desejar tê-la só para ele, com exclusividade. Como um brinquedo caro, como aqueles que seus pais lhe enchiam quando ele era criança.
Assim nasceu o romance entre Thamires – a menina bela, desejável e periférica – e Bruninho, o garoto que arrebatava o coração das universitárias. Aquele romance durou três anos, Thamires nunca tinha amado ninguém e Bruninho era a encarnação de tudo aquilo que ela desejava para a sua vida. Um garoto bem nascido, educado e de um outro circulo social do qual ela queria fazer parte. Um mundo diferente do lugar onde ela nascera e vivera até então. Ele era o sonho que entrou em sua vida. Não cedeu a esse encanto logo, no começo ela o esnobou mas não teve como resistir àquele sonho. Merecia também ser feliz. Não poderia estar condenada àquela vida de pobreza, marginalização e feiura que a cercava. Não se sentia pertencente àquele mundo que lhe era hostil. Mundo o qual ela não escolhera para nascer que lhe fora imposto como aquela casa pequena e humilde, assim como o pai bêbado e violento. Ela não queria mais aquilo, queria Bruninho, ele representava o sonho de uma vida boa. Thamires, que despertava desejos nos homens, que tinha um corpo arquitetado pela natureza para servir ao banquete do gozo erótico, ainda era virgem aos vinte anos. E foi só a Bruninho que ela cedeu o prazer de descobrir os encantos prometidos por aquelas curvas voluptuosas. No começo sentiu um incômodo com a nudez compartilhada mesmo já amando Bruninho. Depois o incômodo passou, sentiu prazer e gozou amar aquele sonho que enfim se fez real.
Sua virgindade lhe era preciosa, em um tempo em que as demais mulheres não ligavam para isso, ela queria permanecer assim até que o homem dos seus sonhos a desvirginasse. Um sonho que ela realizou quando sentiu seu corpo colado ao corpo do homem que se afigurava como uma promessa de felicidade. Thamires não se profanou, preferiu se resguardar, viver a experiência da solidão até o dia em que encontrou o amor. Um amor que iluminou aquela vida periférica e carente de brilho. Um amor de novela que arrebatou sua existência e fez, enfim, sua vida sair da penumbra e reluzir.
Os pais de Bruninho, diferente do que ela esperava, a trataram bem, não a trataram como uma moça periférica. Ela se sentiu acolhida mas, intimamente, algo a desconfortava e ela não sabia ao certo o quê. Sua mãe aprovava aquele namoro que, a cada ano, parecia se consolidar. Ela fez um curso técnico, seu namorado só tinha olhos pra ela e vivia estudando para concurso. Ultimamente andava até meio distante de tanto estudo, aqueles três primeiros anos foram de uma paixão ardente. Ele a tinha ensinado a descobrir seu próprio corpo, as delícias de uma vida sexual e amorosa. Mas depois de três anos, Bruninho ficou mais frio, meio distante, só falando em estudo. Ela tinha, entretanto, certeza que se entregara ao amor da sua vida. Que ele, depois dela, virara um homem de verdade. Ela também tinha feito um bem a ele, também era um sonho na vida daquele garoto de classe média alta que aprendera a ser responsável pela via do amor e pelas curvas saborosas do corpo de Thamires.
Mas um dia aquele sonho de novela ruiu, Bruninho, distante e estudioso, tinha um caso com uma morena de corpo escultural e com uma diferença fundamental em relação a Thamires: ela era rica, filha de médicos e também universitária.
Aquilo foi o fato mais tenebroso de toda a sua existência, seu mundo de sonho converteu-se em uma selva de trevas. Sentia seus ombros pesados, estava mais humilhada do que no tempo em que a pobreza era sua única companhia. A desonra de ter sido enganada, de ter se deixado enganar, ser trocada, de certa forma, por uma outra e ainda por cima: rica.
Thamires sentiu uma estaca ser cravada em seu peito. Um vazio agudo e agonizante se espalhou pelo seu corpo. Ela não tinha sequer com quem desabafar, sentia-se enojada em ter perdido a virgindade com aquele garoto mimado que a tratou como mais um brinquedinho, um brinquedo erótico que lhe dava prazer mas do qual ele cansou e quis outro, melhor, outra: morena, universitária e rica. Sua dor era profunda, vibrava nas cordas mais recônditas de sua alma, agora envenenada pela humilhação.
Depois que Thamires se descobriu traída, ela rompeu com Bruninho que entrou em parafuso. O rapaz ligava pra ela a cada minuto e ameaçava até se matar se ela não reatasse. Tudo em vão, pois ela estava ferida de morte, seu orgulho era mais forte. “Ele que morresse” pensava, pois ela já tinha morrido. Seu corpo se fechado. Bruninho chorou como um menino mimado que perdeu seu brinquedinho.
Aquela história já tinha mais de ano e agora ela estava ali, nua sobre a cama, na companhia apenas de sua nudez. Seus pensamentos soltos no ar, vagando ao sabor da lembrança.
Já não mais suportava aquele cheiro, um odor que invadia todos os seus poros, impregnava-se em todos os lugares e poluía sua mente. O cheiro forte e enjoativo de cuscuz com ovo. Odor que ocupava todos os espaços daquela casa pequena, casinha humilde de gente pobre. Ela assim se via, aquele também era o cheiro dela. O odor da pobreza. Thamires já não suportava mais comer: cuscuz com ovo. Aquilo lhe dava vontade de vomitar, tamanho o asco que sentia de tudo, da comida que nunca mudava de cardápio, sempre a se repetir de forma tortuosa; da casa pequena, onde ela se sentia como uma condenada entre quatro paredes míseras que a sufocavam e comprimiam. Uma desilusão com aquela vida pálida e ofuscada, recheada com uma pobreza do tamanho do mundo. Pobreza que se estendia pelas ruas e casas daquele bairro humilde, de gente carente, que vivia uma vida sem brilho, na penumbra dos sonhos. Eram mesmo sombras de gente, a viver uma vida em trevas. E ela se sentia aterrorizada e intimidada com aquela sombra que agora se apossara dela. Uma sombra opaca que acentuava a miséria que sempre esteve ao seu lado, mas que ela, até então, pela qual não se deixara contaminar. Se sentia suja e fedida, como aquela comida, aquela casa, aquele bairro e as pessoas que o habitavam. Uma sombra que atestava sua dor. Dor da carência, escassez de dinheiro para comprar o gás que sempre faltava; ausência de dinheiro para comprar comida; falta de dinheiro para pegar ônibus; vazio de dinheiro para respirar…
Sua mãe era o que lhe dava forças para querer viver e lutar. Uma mãe precocemente envelhecida, com o semblante de dor resignada insculpida no rosto. Mulher ainda jovem, mas aparentando ter mais idade do que realmente tinha. Uma mulher que fora bela em sua juventude não muito remota. Sua irmã estava desempregada, sua mãe fazia bolos para vender e ela tinha aquele empreguinho sofrido de atendente em uma empresa de radiotáxi. Assim ela ia sobrevivendo, aquele emprego estava consumindo a sua vida. Já não tinha mais tempo para respirar, sentia-se como uma escrava acorrentada àquela rotina desregrada onde ela se sujeitava a uma escala de trabalho onde cumpria as mais extenuantes e inusitadas jornadas. Eram madrugadas, sucedidas de manhãs e tardes em dias alternados e que punham seu relógio biológico em parafuso. Mas, ainda assim, era aquele emprego que estava salvando a sua vida, a sua e de sua família. Um emprego em uma empresa de radiotáxi de Campina Grande onde ela atendia os chamados dos clientes e encaminhava os taxistas das respectivas áreas. Trabalho mecânico que se repetia por horas a fio enquanto ela sonhava estudar e ser advogada, entretanto sua realidade era outra, era a mocinha do radiotáxi que vivia em um bairro de periferia, morando em cubículo, atravessando as madrugadas a atender telefonemas e a usar aquela linguagem cifrada: “Copiou?!”
Assim se sucediam os dias e as noites que sequer via; senão, ao sair de casa e ao voltar, em noites frias no lombo de uma mototáxi. Thamires era uma espécie de zumbi que carregava a responsabilidade de sustentar um lar com o salário mísero que recebia. Salário que evaporava antes do final do mês, deixando-a de mãos vazias e muitas vezes de estômago embrulhado e vazio. A cidade das festas e eventos estava cada vez mais distante, só tomava conhecimento das festividades pelos pedidos de telefone. Sua vida tornara-se uma clausura em torno do trabalho e da pobreza. O mundo das festas e namoros era um mundo alienígena que as circunstâncias da vida a tinham usurpado. Seu corpo também estava fechado desde a desilusão com Bruninho. Vivia apenas aquela rotina escravizante para subsistir, acordar viva no dia seguinte, sentindo cheiro de cuscuz com ovo em uma casa pequena, vendo o rosto e a paisagem da pobreza em todos os lugares.
Senhor Wilson era um homem velho, gordo, baixinho e careca. Era o dono da empresa de radiotáxi na qual Thamires trabalhava. Um homem rude que veio do sertão paraibano e que em Campina Grande tinha feito de tudo, sempre com o desejo de ficar rico. Um homem de espírito empreendedor e prático. Há uns dez anos tinha aquela empresa de radiotáxi, empresa bem estruturada que lhe permitia viver de forma majestosa. Entretanto, nunca perdeu o jeitão rude e firme. Era um homem fogoso de várias mulheres e pensões. Senhor Wilson, que não tinha dotes de galã, adorava colecionar amantes com sua cabeça tomada pela calvície, subsistindo apenas alguns poucos e ralos cabelos sobreviventes, conjuntamente com sua barriga enorme e protuberante, de uma protuberância mole e gelatinosa que caia sobre o púbis, ficando invariavelmente para fora da camisa que não a abarcava. Amantes, assim, que ele colecionava, antes, por seus dotes patrimoniais. Um patrão grosso e severo que assediava suas empregas humildes. Thamires o estava deixando louco aquela mulher era um abuso de tão formosa. Um corpo como aqueles não poderia nunca envelhecer, era um pecado. Pecado maior é que ela não era como as outras empregadas com as quais ele se aventurava: ela era honesta. Esse pecado da honestidade o estava deixando louco, sonhava com Thamires nua, suas coxas grossas e bem torneadas, sua bunda majestosamente esculpida pela natureza o faziam transpirar de desejo. A volúpia de explorar aquele corpo, a barriguinha chapada, as montanhas protuberantes que eram os seus seios e que nua, sobre a cama, deviam apontar para os céus. Assim, Sr. Wilson se consumia em suas fantasias que se convertiam em cantadas, a princípio discretas, mas que com as negativas de Thamires se tornaram acintosas, grosseiras e vulgares. Thamires tinha nojo daquele velhote gordo e barrigudo, daquela careca suada de uns poucos cabelos ridículos que o tornavam mais repulsivo ainda. Um velho grosseiro de boca suja, de dentes amarelos que quando a via como que espumava… deixando cair um filete de saliva que escorria e, vez por outra, resvalava em seu braço ou rosto. Sentia vontade de sair correndo, ver-se livre daquelas investidas que só lhe deixavam mal.
Se ainda estava naquele emprego é porque não tinha para onde correr, estava em um mato sem cachorro. Aliás, o cachorro estava bem ali, escutava os latidos dele, atendia pelo nome do seu patrão: Sr. Wilson. Ultimamente, só de birra, ele a escalava para os horários mais inóspitos como uma forma de se vingar dela, por ser burra e “não abrir logo as pernas pra ele”, pensava. O seu desejo ardente se convertera em ódio, um ódio em forma birrenta, em perseguições e humilhações que ele infligia a ela. Já sentia mesmo prazer em massacrá-la, em vê-la oprimida, sentida, sofrida, aquilo despertava nele um outro gozo. É como se ele adorasse vê-la submissa, manipulada ao seu bel prazer. Se não se apossara do corpo dela como desejava, estava agora a se deliciar com aquela forma maquiavélica de sevícia, de dor que a ela impunha. Um gozo sádico que tomava conta de seus atos e sua imaginação. Assim transcorriam os dias de Thamires que, do alto dos seus vinte e poucos anos, sobrevivia entre uma casa pequena, pobre e cheirando a cuscuz com ovo; e um trabalho onde era perseguida, assediada e humilhada por um velho nojento, gordo e tarado. Naquele dia, ela tomou uma resolução, iria procurar um advogado, só assim poderia exigir do pai uma pensão que permitisse que ela voltasse a viver, a estudar e com isso sair daquele inferno. Sua amiga e vizinha, Ana Maria, recomendava-lhe um e hoje mesmo, sem falta, ela iria começar a mudar tudo aquilo. Seu sonho era retomar seus estudos, mas a falta de dinheiro, aquele trabalho, tudo concorria contra. Se tinha direito a uma pensão, por que não a exigir do seu pai? Um pai covarde – como todos os homens o eram -, que a tinha colocado no mundo para viver aquela vida infernal?! Thamires naquele dia saiu de casa para procurar o advogado que sua amiga tinha indicado. Há tempos não andava pelas ruas da cidade com aquela sensação de liberdade de mulher dona de si. Sentia-se, mesmo que por poucos instantes, até outra mulher com aquela calça jeans justa, colada ao corpo, uma blusa branca simples, mas que deixava transparecer, com naturalidade, toda a sua beleza. Os cabelos loiros e bem cuidados como que brilhavam ao vento e, por onde passava, atraía olhares.
Ao chegar ao escritório do advogado, esperava por um homem velho, usando um terno escuro, de aparência séria e com um tom de voz afetado. Mas se deparou com um homem jovem, bonito e simpático. Um homem que nada tinha a ver com aquele homem sério e responsável que sua amiga descrevia. Era mesmo um garotão que se tinha algum ar de seriedade lhe era dado não por sua aparência mas por aquele par de óculos. Do mais, era um homem jovem, cheiroso, bem-educado que a ouvia e a tratava com respeito. Aliás, nunca tinha sido tratada realmente com respeito, afinal, sobre ela sempre sentira incidir aqueles olhares sequiosos de desejos explícitos ou mal dissimulados. Nem mesmo Bruninho a fizera sentir tão bem. Aquela conversa, os documentos, nada a impressionou mais do que a figura jovem e agradável do belo advogado. O seu jeito respeitoso e aquele cheiro delicioso que exalava do seu corpo, foi mesmo um momento de sonho e deleite naquela vida de agruras em que se convertera a sua existência. Thamires, que desejava mudar a sua vida, em um momento pensou em por que a vida fizera aquilo com ela, infligindo-lhe uma condição massacrante e ao mesmo tempo lhe exibindo, de forma inesperada, sonhos como aquele. Um homem dos sonhos: bonito, educado e cheiroso. Por um instante sonhou, ao sair do escritório, ao voltar para casa, ao sentir o cheiro de cuscuz com ovo, que sua vida poderia ser diferente, ter um cheiro saboroso e doce: cheiro de felicidade.
Thamires ouvia ao longe o pipocar dos fogos, era a abertura do São João em Campina Grande, a maior festa popular da cidade e uma das maiores do país. A abertura, a queima de fogos, já se tornara um evento tradicional que atraía uma multidão ao Parque do Povo. Naquele dia especial no calendário festivo, Thamires também recebeu um comunicado especial, porém trágico. Seu pai, que ela não via desde criança, desde que ele a abandonara, sofrera um acidente automobilístico nas imediações de Campina Grande. O telefonema, aquele fato sinistro, o clima festivo da queima de fogos mesclado ao tempo úmido e frio como que a envolveram e a fizeram voltar a pensar no pai que ela não via há muito tempo. Um pai que lhe trazia lembranças desagradáveis, de brigas e agressões sofridas pela sua mãe. Das traições e de como ele as abandonava à fome e à miséria para viver uma vida de festas e farras como naquele mês junino de festas, bebidas e mulheres. A abertura do São João, o acidente do pai, um pai ausente de sua vida e que em um passado remoto a encheu de angústias e medos, a faziam pensar também em como os homens entravam e saiam de sua vida. Que criaturas eram aquelas as quais ela não conseguia compreender. Os homens de sua vida, a começar pelo seu pai, só lhe trouxeram dor, amargura, angústia, desilusão. Os homens definitivamente não lhe eram um bem. Por isso ela, desde menina, nutria uma aguda desconfiança com aquele sexo prepotente, espaçoso e grosseiro que normalmente, invariavelmente, a tomava como um objeto, um brinquedinho erótico. Às vezes, desejava não ter nascido bela, às vezes mesmo desejava nem ter nascido. Uma vida onde os homens da sua vida sempre a roubavam algo: o pai lhe roubou a paz, a poesia de uma infância inocente; Bruninho a virgindade e a pureza de um amor romântico; até seu patrão lhe roubava o orgulho ao se ver assediada como um objeto que ele queria só usar. Thamires, assim, tinha nos homens uma raça maldita, onde ela, invariavelmente, via-se ferida, machucada por aquelas criaturas embrutecidas e acovardadas.
Ao chegar ao hospital, ela o viu. Já tinha imaginado em suas fantasias um reencontro, uma reconciliação, mas não daquele jeito, não naquelas circunstâncias. Ela o viu ali, frágil, entubado, imóvel, à beira da morte, um homem que em nada lembrava aqueloutro que habitava o porão de sua memória: violento, grosseiro e estúpido. Aquele homem sobre a cama, a espera de ser colhido pela morte, era mesmo o seu pai?! Aquele que satanizou sua família, abandonou-a, atirou a ela, mãe e irmã na miséria e fugiu?! Ela estava diante de um moribundo que muito tenuemente carregava ainda alguma gota de vida.
Ela ficou ao lado dele, aquela cena inesperada sacudiu seus sentimentos. Ver o seu pai, ali, naquela condição, não poderia mais que ficar ao lado dele naquele momento. Ele a fizera sofrer mas ela não era má. Queria, em verdade, ter um pai que a abraçasse, a protegesse e orientasse. Um pai presente que a tivesse protegido como ela faria com ele, naquele momento derradeiro. Em verdade ela não lhe nutria ódio, sentia rancor pelo abandono. Com ele, o amor dele, tudo teria sido diferente em sua vida. Não o culpava, ela se surpreendia, com o passar dos dias, em que ela fazia companhia ao pai acidentado e desacordado, em como ainda o amava. Um amor que não sabia saído de onde, amor insuspeito que ela desconhecia ter, nutrir por aquele homem que, em um passado distante, a aterrorizava e que naquele momento era frágil como um recém-nascido.
O amor do cuidado e proteção a surpreendia ao nascer em seu coração, na medida em que cuidava do seu pai naqueles dias que corriam lentos, alternava-se também com a irmã naquele cuidado. A mãe parecia ainda magoada e não se aproximara, aquela responsabilidade seria dela: a filha.
Ana Maria era uma mulher beirando os quarenta anos, sempre fora responsável, obediente, seja como filha, seja como mulher. Não teve muitos namorados, casou jovem com aquele que ela sabia ser o homem da sua vida. Um homem sério, honesto, trabalhador, desprovido de beleza, mas amável. Ela tinha nele seu porto seguro, seu chão. Tiveram três filhos, todos homens, garotos saudáveis que na adolescência se revelaram estudiosos e responsáveis. Ela vivia, assim, uma vida feliz. Um marido bom que a amava, filhos inteligentes para os quais ela sonhava um futuro promissor: um médico; outro engenheiro; e o mais novo advogado.
Ela, intimamente, sentia-se frustrada por não ter estudado, daí os filhos lhe darem tanto orgulho. Ela casou muito jovem, com a responsabilidade da maternidade conjugada com o ciúme do marido, resignou-se a uma existência doméstica. Nunca trabalhou. Seu marido também era sua fonte financeira.
Aquele sonho de família era o seu maior bem, mas de uns tempos para cá ela se sentia incomodada com algo que não sabia bem ao certo o quê. Um enjoo súbito da cara do homem que ela supunha ser o homem da sua vida. Já não tinha mais prazer em vê-lo, não tinha mais desejo do sono compartilhado, queria sair, pintar o cabelo, mudar o guarda-roupa, substituir aquelas roupas de velha por roupas jovens. Queria viver. Ana Maria, assim, oscilava entre uma depressão profunda e um rompante de euforia. Uma oscilação de humor que vinha deixando seu marido assustado. Isso já vinha ocorrendo há dois anos, até então viviam um verdadeiro sonho de família e relacionamento. Mas agora ela insistia em arranjar um trabalho, queria ajudar na renda familiar, sentir-se útil. Ele aceitou, talvez assim aquela angústia que via em seu rosto desaparecesse.
Ana Maria começou a trabalhar, sair de casa. A ver gente e sentir-se gente. Era disso o que ela sentia falta. Gostava também de dançar, aliás, amava dançar e só parou porque casou e teve três filhos. Seu marido, tradicional, disse que não ficaria bem uma mulher casada sair por aí dançando. Ela, certinha e responsável, resignou-se, mas agora aquele desejo voltou: louco e furioso. Aliás, sentia tudo a mil por hora, queria viver tudo de forma intensa como se ela tivesse saído da prisão ontem.
Com seus cabelos coloridos e suas botas longas de veludo, Ana Maria passou a sair escondida de todos e a frequentar os forrós típicos do São João de Campina Grande. Sua vida, desde então, era só festa. Em suas andanças festivas, sem o conhecimento e o consentimento do marido, Ana Maria descobriu o sabor de novas amizades, passou a sentir prazer naquela vida clandestina, vida de festas proibidas. Passou a sentir prazer em mentir para o marido, inventando histórias. Um prazer novo, pois nunca, até então em sua vida, havia mentido, sempre fora sincera e honesta, como filha e mulher.
O som da zabumba, da sanfona e do triângulo formava um arranjo musical que deixava o juízo de Ana Maria em completo desarranjo. Sentia-se como que invadida por uma energia súbita que eletrizava todo o seu corpo, fazendo-se sentir poderosa. Assim dançava tardes e noites pelos forrós da cidade e como no conto de Cinderela, tinha que abandonar o baile no horário marcado para não ser descoberta pelo marido. Em meio às festas e frenesis dançantes, Ana Maria – que nunca teve outro homem na vida que não seu marido e que em momento algum desejou trai-lo –, sentiu-se, de súbito, atraída por um homem rude, vulgar e que a olhava como que a desnudando. Sentia-se incomodada com aquele olhar impudico. Um olhar diante do qual ela se sentia nua. Ana Maria queria só dançar e se sentir livre. Mas foi nos braços de um sanfoneiro, em uma festa de São João, que ela sentiu um tesão nunca experienciado em mais de vinte anos de casamento com aquele que ela supunha ser o homem da sua vida. Aquele sanfoneiro rude, grosseiro, vulgar e raparigueiro tinha virado sua cabeça. Ela, certinha, honesta e mãe de família exemplar agora traía o marido com um qualquer e aquilo, para sua surpresa e espanto, dava-lhe um prazer agressivo e desproporcional. Aquilo já estava ficando perigoso, era mesmo uma loucura. Mas não resistia ao prazer do proibido. Assim, Ana Maria passava as noites de bailes forrozeiros na clandestinidade. Dançando e sentido um demoníaco prazer em chifrar, voltava para casa sempre com uma desculpa e um olhar de virgem de Pietà…
Uma semana antes do acidente com seu pai, Thamires havia saído com o advogado indicado por sua amiga. Ela aceitou o convite dele após alguma resistência. Em verdade, desde que terminara com Bruninho, não tinha saído com ninguém, a rotina asfixiante não lhe deixava tempo sequer para pensar nisso. Aquele encontro com o advogado tinha lhe deixado nervosa. Não sabia ao certo o que fazer, o que dizer, era tudo novidade.
Ainda mais por se tratar de um homem tão diferente do seu mundo. Até o pedido para saírem juntos foi feito de um modo sutil e elegante. “Um homem desses não é para mim”, pensava. Mas mesmo assim foi, marcou com ele pois não queria que ele a fosse pegar em casa, tinha vergonha de onde morava, de ser vista e falada pela vizinhança.
Ao encontrar o advogado, ele lhe pareceu mais jovem ainda. Com roupas normais, sem aqueles trajes formais de advogado. Um homem moreno, de uma cor radiante, de olhar honesto e vívido. Uma forma doce de olhar para ela que até então homem algum havia lançado. Mas aquele encontro foi rápido e nervoso para ela. Ela, em verdade, não se sentiu à vontade. Conversava sem olhar em seus olhos, sentia-se ofuscada, embora sendo uma bela mulher, diante daquele homem inteligente de voz doce. Um homem atraente que era mesmo a encarnação do homem dos sonhos de qualquer mulher, pensava. Mas aquele encontro, o local, tudo parecia lhe dizer: “esse não é o seu mundo; esse sonho não é, não será seu”. Ela voltou para casa e a muito custo aceitou que ele a deixasse na porta de casa. Diante do seu rosto, rosto belo, do cheiro do seu corpo ela sentiu um desejo irresistível de beijá-lo mas não conseguiu mais que virar o rosto, cedendo-lhe um lado da face.
Seu pai enfim acordara, estava se recuperando. A vida que parecia por um fio estava voltando para o seu rosto. A sua face de um branco pálido e cadavérico, esboçava uma cor rosada de vida ressuscitada. Os olhos de Thamires brilhavam diante daquele pai regresso. Seus olhares enfim se encontraram, seu pai era um outro homem. Ao falar, ele agradeceu a Deus por ter lhe dado uma filha tão linda. Sentia-se premiado por estar vivo, após o acidente que aos poucos ia lembrando. O prazer de se descobrir pai daquela mulher bela e carinhosa, mesmo ele tendo sido tão covarde com ela há tantos anos. Thamires disse que o perdoava e ele chorou, abraçou-a e disse ser aquele o mais belo momento de sua vida. Se estava vivo é porque ela esteve ao seu lado. Aquelas palavras foram fundo no coração de Thamires que também chorou beijando a mão do pai. Um pai que fora por tantos anos a encarnação do seu sofrimento, a fonte de suas angústias.
A vida de Thamires voltou a ter brilho, não se importava mais com o cheiro de cuscuz com ovo e passou até a gostar. No trabalho, já não mais se importava com as perseguições de Sr. Wilson e pensou até em sair novamente com o belo e carinhoso advogado, queria realmente ser feliz. No encerramento do São João, ao pipocar da chuva de fogos, Thamires descobriu que seu pai fora embora sem se despedir. Saiu sem nada dizer, simplesmente sumiu. Ficou bom e voltou a ser o que sempre foi: um pai ausente. Aquelas palavras, lágrimas, foram só jogo de cena. Ela sentiu-se mais uma vez traída e abandonada. Antes mesmo já havia ligado para o advogado e desistido de processá-lo. Agora, com seu sumiço repentino, sem sequer uma palavra de obrigado, ela desistiria de vez dele, nem dinheiro de pensão para estudos queria mais.
Naquele mesmo dia em que Thamires descobriu que o seu pai tinha ficado bom e sumido, ocorreu o encerramento do São João de Campina Grande. Uma multidão acompanhou a chuva de fogos que marca o encerramento da festividade que é o verdadeiro Natal do nordestino. Ao som de cada um daqueles fogos que riscavam e coloriam o céu da cidade no encerramento do São João, Thamires sentia em seu peito o estalar de uma angústia. O abandono do pai, um pai que ela descobria, para sua surpresa, que ainda amava, o pai que mais uma vez a abandonava. E a possibilidade de um novo amor que ela já não mais acreditava… cada explosão era como a ruptura de cada um de seus sonhos que ela desistiu de nutrir…
Outro ano se passou na vida de Thamires, ela continuava a viver na mesma casinha apertada de sempre, no mesmo trabalho, vivendo aquela rotina sufocante que se traduzia ao final do mês em pouco dinheiro e em uma existência sem prazeres ou luxos. Os sonhos tinham sido perdidos naquele caminho. Ela agora estava gordinha, suas formas harmoniosas e equilibradas foram como que devoradas por aquela rotina escravizante. Comia fora de hora, muitas vezes na rua, habituara-se a comer petiscos e guloseimas que vinham esculpindo o seu corpo com novas formas, curvas mais substanciosas de uma deusa grega em queda, modelada por uma vida de agruras. Assim Thamires continuava a sobreviver: sem brilho, sem dinheiro, sem alegrias e sem amores. Ainda tinha seus encantos, mas já não era mais aquela mulher de formas majestosas e impecáveis que um dia já foi. Em sua rotina pesada, Thamires, quando menos esperava, encontrou o amor. Um amor que começou tímido, distante, por um taxista da empresa de radiotáxi onde ela trabalhava como telefonista. Aquele amor não brotou de imediato, foi aos pouquinhos. Foi assim que Thamires, dois anos depois, envolveu-se com Leonardo. Um rapaz franzino de pele morena, olhar vívido, cabelos curtos e um jeito simples. Thamires resolveu dar uma chance a ele, dar uma chance a si mesma. Afinal, ele conhecia a pobreza, era como ela. Dividia o táxi com o pai, também taxista, e assim sustentavam um lar. Thamires que já não era aquela ninfa grega de outros tempos, ainda conservava seus encantos, em um corpo recheado, que lembrava de longe a mulher escultural que fora há não muito tempo. Leonardo não era o homem mais belo do mundo, nem era inteligente ou culto. Era simples e humilde, como ela: era o homem certo.
Foi assim, em uma noite perdida, que Thamires abriu novamente seu corpo para o amor. Suas formas arredondadas, seus traços volumosos denotavam o que era a sua vida. Leonardo a amou ali mesmo, dentro do táxi, em um fim de noite. Seus corpos nus entrelaçados começaram a escrever mais aquele capítulo na vida de Thamires. Após a noite de amor, ali mesmo no carro, Leonardo, aquele rapaz valoroso que cativou o coração de Thamires, após tantas desilusões, a deixou em casa. Aquele namoro já tinha seis meses e aquela fora a vez em que Leonardo sentiu que realmente Thamires o amava.
Thamires despediu-se de “Leo”, como o chamava. Estava mais uma vez esperançosa na vida. Vivendo uma vida como a que tinha que ser. Leonardo, o taxista humilde, trabalhador e valoroso, estava feliz quando ouviu o celular tocar, após se despedir de Thamires…
– Alô, quem é?! Paulinha, minha paixão… Seu noivo já foi embora?! Então amor… Me espera que estou indo praí… Acabei de deixar minha namorada na casa dela… Me espera daquele jeito que gosto… Peladinha, nuinha… usando só aquela camisa do Campinense…