Essa pergunta não chega desacompanhada de história. Alberto Pucheu se perguntou Para que poetas em tempos de terrorismo?, livro publicado em 2017 pela Azougue editorial. O terrorismo de que ele trata, no entanto, não é o esperado: é o medo do outro, este vizinho desconhecido que sempre representa um perigo. Diz ele no poema homônimo ao livro:
“o oriente é terrorista, a áfrica
é terrorista, a natureza é terrorista, manifestantes
são terroristas, professores são terroristas,
alunos são terroristas, educação é terrorista,
bebês são terroristas, negros são terroristas,
pobres são terroristas, índios são terroristas, […]
terrorista é o outro, quem quer que seja.”
Diante do medo do outro, os poetas em tempos de terrorismo são aqueles que tentam pensar o mundo diante da catástrofe do despertencimento. Se o perigo do outro nos cerca a todo tempo, os poetas são aqueles que repensam a possibilidade da comunidade em sua impotência. O poema de Alberto Pucheu nos apresenta uma sensível distorção de nossas preocupações: em tempos de terrorismo, quem perguntaria por um poeta? Se, em um voo, perguntarem por um doutor, tenho certeza de que não conseguirei atender a um doente com meu doutorado em ciência da religião — afinal, quem pediria por minha especialidade em uma emergência dessas? Talvez eu seja mais útil no primeiro caso.
Seguindo a tradição filosófica, registrada por Aristófanes, de estar com a cabeça nas nuvens, me peguei pensando recentemente: para que humoristas em tempos de tarifas? Aqui, o problema que Donald Trump gostaria de arranjar com o Brasil também tem a ver com um tempo de terrorismo: o medo do estrangeiro que rouba o emprego, do negro que rouba a cultura ocidental, do brasileiro que rouba o equilíbrio da balança comercial. Para o choque de quase ninguém, todo esse medo se baseia em mentiras. Ainda assim, o presidente estadunidense se colocou a tarifar uma lista de produtos brasileiros tentando chantagear o país a anistiar seu aliado político Jair Bolsonaro — como se dependesse do executivo uma intervenção direta no judiciário.
Em tempos de tarifas, para que humoristas? A resposta mais óbvia à pergunta, que, em política, na maior parte das vezes é a errada, é que, para lidar com o mau humor de Trump, só ouvindo novas piadas. Tem sentido pensar que diante de um mundo de tragédias, que devem ser tratadas com toda seriedade, o humor serviria para alienar. Veja bem, trato aqui de humor e não de mau gosto ou de crime, como o que faz Léo Lins que, após ser condenado, continua ironizando situações de abuso. Esse tipo de coisa não é necessário em tempo nenhum. Falo aqui do humor profissional, mas também do amador. Deste humor que, brasileiros, praticamos cotidianamente nos pontos de ônibus, nos corredores das escolas, faculdades e empresas, na mesa do bar ou de casa.
Ricardo Araújo Pereira, que outrora seria alvo de nossas piadas por ser português, faz uma longa e engraçadíssima reflexão sobre o humor em seu mais recente livro, lançado este ano pela editora Tinta-da-China Brasil, Coisa que não edifica nem destrói. A tese central do livro é que tal coisa é, justamente, o humor. E isso nos dá um primeiro indício para que respondamos à nossa pergunta: tomando de empréstimo uma frase de Memórias póstumas de Brás Cubas como título, o autor diz que o humor não se presta a grandes pretensões, nem para um lado, edificar, nem para outro, destruir. O humor, então, e consequentemente o humorista, é algo que está completamente convencido de sua desimportância. E, talvez, por estar disso convencido, possa alcançar um lugar especial — sobretudo em tempos de tarifas.
Pouco mais à frente em seu livro, Ricardo Araújo Pereira cita o encontro mitológico de Perseu e Medusa como exemplo do que o humor faz. Acredito que aqui encontraremos, finalmente, nossa resposta. Medusa era uma górgona, uma criatura feminina, com cabelos de serpente, capaz de transformar em pedra quem a olhasse diretamente. Diante do desafio de matá-la, Perseu usa de um subterfúgio: olha para Medusa através de um escudo, usando-o como espelho, e assim consegue decapitá-la. Nessa pequena subversão do uso normal de um escudo, se encontra o humor: ele é o uso de um instrumento de defesa como instrumento de ataque. Em vez de fechar os olhos diante do perigo, o humor serve como um espelho que faz com que enxerguemos o perigo indiretamente, sob outra ótica. Não foi um tipo de humorista aquele que, inocentemente, gritou a nudez do rei?
O espelho, entretanto, não representa com exatidão a realidade. Diante do espelho, vê-se a imagem invertida. No caso de um espelho convexo, como um escudo, a imagem ainda é distorcida pelo formato da superfície. Em um parque de diversões, é essa imagem que nos achata e nos faz, justamente, rir de nossa forma no reflexo. Para que humoristas em tempos de tarifas? Para que, olhando indiretamente nossos inimigos, percebamos que eles não passam de meninos mimados que querem brincar de governar o mundo. Trump é muito poderoso, sim, mas não passa de uma versão gringa e laranja do Roberto Justus. Elon Musk tem muito dinheiro, sim, mas, no fundo, é apenas um playboy que, sem inteligência suficiente para ser cientista, compra tecnologia e a batiza com um nome ruim (quase sempre envolvendo um X). Jair Bolsonaro tem uma massa de seguidores fiéis, sim, mas é apenas um soldadinho frustrado e ressentido — o recruta zero do mau humor.
Para que humoristas em tempos de tarifas? Para percebermos que nenhum inimigo é invencível (ou imbrochável).