Chego ao trabalho. Me sento numa cadeira desconfortável. Inadequada ergonomicamente. Em volta de uma mesa também inadequada, especialmente para a produção de documentos escritos, o corpo reclama fazendo-lhe doer a coluna cervical.
Mas ali mesmo persevero buscando significar meu laboro diário. Em um momento, identifico o senso de justiça das políticas públicas; noutro metafisico os objetivos dos afazeres cotidianos; e assim, ingenuamente, procuro a materialização de meus sonhos.
Essa avalanche do pensar é suspensa abruptamente por uma flecha que adentra a sala de trabalho, se senta ao computador, me olha com seus óculos armados verdemente esmeraldino e me fulmina: vou tirar não mais que cinco minutos para ler sua crônica.
Fico parado, quase me engasgo, os vasos do corpo se esvaziam. Murcho, pois alguém me diz na minha cara que vai demarcar um espaço e cortar um tempo para ler o que eu escrevi. Minha cabeça me faz voar para outros cantos e me vejo parado, brincando de estátua, estatelado fico.
E, mais uma vez, ela vem como uma flecha de novo, ela, Lena, nem Maria Helena, nem Marilena, nem Helena, muito menos Leninha. Lena, sem mistura, sem gelo e sem açúcar, feito suco de fruta de época, quase pura. Ela mesma, Lena, como uma lâmina, sentencia: Gostei! suas palavras correm como um rio. Vai pra lá, vem pra cá, ondula, mas não engole ninguém e suas ribanceiras são guias despretensiosas de serem caminhos. Seu rio de palavras nos leva levando. Gostei, mas como sou uma professora exigente, dou nota nove ponto setenta e cinco, porque tem uma palavra que eu não conheço: o que é mesmo enrualizar?
E eu não soube responder. Será que é andar pela rua, entregando-se aos seus buracos, asfaltos, sarjetas, por onde correm águas, esgotos e águas novamente? Ou será que é conduzir carros, automóveis, lambretas, motos, carroças e bicicletas em seu leito? O que será que será? Será a música de Chico Buarque? Será uma mulher solta entorno de um poste? Ou será que esse verbo se aplica somente para a vida de Carminha? Ou de Carminhas?
Uma abundância de perguntas me encheu até o pescoço. Me senti inundado pelas enchentes de Menino de Engenho, assim como também me senti enxuto pelas secas de Graciliano Ramos. Me senti ainda como um santo do pau oco desejoso de fazer milagre. Me vi de galho em galho feito Cosme de Ítalo Calvino.
E, finalmente, respondi: não sei direito o que é enrualizar. Talvez seja a rua em movimento. Agindo. Talvez seja porque eu goste muito de verbalizar. Não sei direito. Mas quem sabe Carminha saiba? Ela se enrualizava. Vou falar de novo com Carminha. Talvez ela me ajude a entender a rua, me desamarrando das cordas que comprimem minha corporeidade.
Lena aquiesceu, mas não me deu a nota máxima!