Um episódio recente do podcast Rádio Novelo Apresenta traz à tona a história por trás da frase de Caetano Veloso que viralizou nas redes: “Você é burro, cara!”. O contexto, que permaneceu nas sombras, é bastante interessante. Caetano está respondendo a uma pergunta do jornalista e crítico de arte Geraldo Mayrink sobre sua relação com a mídia de massas e a chamada “patrulha ideológica”. (O programa está disponível no YouTube para quem quiser assistir.) O cantor, de fato, responde muito pouco à questão que lhe foi colocada, mas fala sobre a crítica de música no país e, mais especificamente, sobre a crítica que o jornalista tinha publicado, anteriormente, na Veja sobre o disco Muito, de 1978. Nessa crítica, Mayrink cita versos que seriam ruins em duas canções: “São João, Xangô Menino” e “Eu te amo”. Acontece que justamente os versos desqualificados pelo jornalista são citações de outras canções. A essa crítica, Caetano responde que “os versos nem são maus nem são meus”.
Para além da maravilhosa sonoridade da frase, que o artista consegue criar ao longo de uma resposta furiosa, a ideia de algo que nem é mau nem é meu parece se aplicar a muitas situações. A iminente prisão de Jair Bolsonaro talvez seja a mais urgente delas. Ao longo do processo judicial e das investigações dos quais ele é alvo, por vezes se aventa o papel do presidente Lula em relação à situação. As tarifas impostas por Donald Trump (assunto de minha última coluna) são uma reação direta à possibilidade de Lula intervir no judiciário e anistiar Bolsonaro. Esse pedido de intervenção não é mais do que o reflexo de uma mente antidemocrática: enquanto as três esferas interferirem uma na outra, nenhuma delas consegue fazer o seu papel. E mais: quando o executivo quer dominar sobre legislativo e judiciário, estamos a um passo de romper as fronteiras da democracia. Não é isso, em alguma medida, o que Trump tenta fazer nos Estados Unidos?
Parece-me que, diante da pressão, tanto de Trump quanto de parte da opinião pública, o melhor caminho para Lula é responder como Caetano responde: o julgamento de Bolsonaro nem é mau nem é meu. Em primeiro lugar, não é mau porque segue os ritos jurídicos legais, tomando as medidas necessárias com cautela para que sejam observados os devidos processos legais. Em segundo, não é de Lula porque não lhe compete, enquanto chefe do executivo, intervir em julgamento algum, seja de aliados ou de opositores políticos. Nesse sentido, Lula poderia dizer: os julgamentos nem são maus nem são meus. É inegável, entretanto, que o presidente colha capital político das possíveis condenações, já que elas revelam, ao público ainda desacreditado, que a família parece estar envolvida em uma série de falcatruas e farras com o dinheiro público.
Para além disso, acreditando que Lula lerá esta coluna e seguirá meu conselho, diria que ele deve escutar Muito de Caetano Veloso. Sua audição começaria com “Terra”, na qual ele relembraria a ditadura brasileira, celebrada por Bolsonaro e sua trupe, e ouviria Caetano cantando a diferença entre a cela da prisão e o tamanho do mundo. Passaria por versões de músicas de Jorge Ben, “Quem cochicha o rabo espicha”, e “Eu sei que vou te amar”, de Tom Jobim e Vinicius de Moraes. Na primeira, perceberia a qualidade do meu primeiro conselho, sobre se abster de certas ações. Na segunda, perceberia que, talvez, seu mandato tenha como objetivo apagar o que a ausência da democracia causou no país. Chegaria, por fim, à festa com “São João, Xangô Menino”. E, com Caetano, celebraria o que tem sido feito na cultura brasileira. À época, Caetano cantava:
“Viva São João, viva Refazenda
Viva São João, viva Dominguinhos
Viva São João, viva Qualquer Coisa
Viva São João, Gal Canta Caymmi
Viva São João, Pássaro Proibido”
Nesses versos, o artista celebrava uma onda de discos recém-lançados e que mostravam a qualidade da música brasileira em meio à diversidade: Refazenda, de Gilberto Gil; Domingo, Menino Dominguinhos, de Dominguinhos; Qualquer Coisa, do próprio Caetano; Gal Canta Caymmi, de Gal Costa; e Pássaro Proibido, de Maria Bethânia. Hoje, Lula pode cantar: “Viva São João, viva Caju, viva Dominguinho, viva Beleza. Mas Agora A Gente Faz O Que Com Isso?, viva Aí Dentu, viva O Mundo Dá Voltas”. Diante da justiça sendo feita, importa bailar o que não é mau (nem meu).