Professor, pesquisador, escritor e tradutor. Doutor em Ciência da Religião pela UFJF com pesquisa de pós-doutorado na UFPB. E-mail: danilo.smendes@hotmail.com
Professor, pesquisador, escritor e tradutor. Doutor em Ciência da Religião pela UFJF com pesquisa de pós-doutorado na UFPB. E-mail: danilo.smendes@hotmail.com
Punir golpistas, perdoar eleitores: o restante da canção que entoamos nestes tempos
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Dona Ivone Lara e Jorge Aragão (Foto: Reprodução/TV Brasil)

Desde a condenação, no Supremo Tribunal Federal, de Jair Bolsonaro e de tantos outros golpistas envolvidos nos atos de 8 de janeiro de 2023, as redes sociais se encheram de comemorações. Dentre tantas festas e alegrias, como era de se esperar, houve muito samba. Um deles, talvez o mais viralizado, foi “Tendência”, parceria de Jorge Aragão e Dona Ivone Lara: “Não me comove o pranto de quem é ruim”. A arte tem dessas coisas: um bom verso parece que foi feito para um momento totalmente alheio à sua composição ou mesmo ao contexto no qual está inserido. E é nesse ponto que tudo começa a ficar mais interessante.

Minhas formações me perseguem neste tópico: contexto. Teólogos falam de Sitz im Leben, contexto vital; filósofos falam de Stimmung, atmosfera, ambiente dos conceitos. Ambos querem ressaltar algo parecido, o fato de que texto fora de contexto é pretexto para a mentira. Fora do jargão, não podemos entender uma frase fora de seu lugar de enunciação, longe do contexto em que ela foi dita.

Um exemplo: a teologia da prosperidade, que ficou conhecida por se alastrar nas rádios e redes de televisão brasileiras, é um discurso que afirma que Deus enriquecerá e fará prosperar todo aquele que se sacrificar materialmente por sua causa. O mote, poderíamos dizer, é o versículo bíblico que se encontra em Lucas, capítulo 4: “Portanto, se tu me adorares, tudo será teu”. No entanto, quando olhamos para o contexto da narrativa, percebemos que essas palavras não saem da boca de Jesus, mas do Diabo que o está tentando. Texto sem contexto.

“Tendência” fala de um amor que deu errado. O eu-lírico canta seu arrependimento de ter acreditado no/a amado/a. “Sem compreensão, a desunião tende a aparecer”. Não havia confiança, compreensão. Houve engano. Então, a música cresce: “Você entrou na minha vida, usou e abusou, fez o que quis/ E agora se desespera dizendo que é infeliz/ Não foi surpresa pra mim, você começou pelo fim/ Não me comove o pranto de quem é ruim”. O pranto é consequência das escolhas de quem errou e enganou o eu-lírico. E ele não se comove com seu choro nem com o seu desespero de infelicidade. A mágoa supera a empatia.

O sentimento, parece-me, não está tão distante do que sentimos pelos golpistas: em um dos momentos mais difíceis da recente história mundial, com milhares de pessoas morrendo todos os dias, ele estava lá: rindo de quem sofria, se negando a comprar vacinas, diminuindo a gravidade da situação. Não. Não era uma gripezinha. E, agora, julgado e culpado. Condenado. Sua infelicidade não nos comove, não nos causa empatia. Seu pranto não é incômodo. Não nos surpreende que agora ele chore, mas não é sobrenatural que ele colha o que plantou. Nesse ponto, parece que o contexto se mantém: não me comove o pranto de Jair Bolsonaro por causa de sua maldade.

Todavia, a partir desse momento, a canção dá uma virada. E, a meu ver, aqui não podemos mais cantar para ele nem para os golpistas também condenados. “Quem sabe, essa mágoa passando, você venha a se redimir/ Dos erros que tanto insistiu por prazer, pra vingar-se de mim/ Diz que é carente de amor, então você tem que mudar/ Se precisar, pode me procurar”. Se antes o ressentimento, justificado, agora o perdão. Perdão não é anistia. Que os golpistas paguem pelo que fizeram e tentaram fazer. Mas, um dia, a mágoa que nutrimos contra os pouco mais de 58 milhões de brasileiros que votaram em Bolsonaro no segundo turno de 2022 há de passar. E, nessa hora, deverá haver perdão.

Lembro que, quando novo, achava estranho que tantos brasileiros tivessem votado em Fernando Collor. Como as pessoas caíram naquele discursinho mequetrefe de caçar marajás? Bem, descobri que as pessoas caem por muito menos. Até hoje me impressiona, porém, que haja poucas pessoas que admitam ter votado no Collor. Onde foram parar seus eleitores? Envergonhados, seguiram em frente. Alguns aprenderam a lição, outros tantos não.

Imagino que essa situação se repetirá em alguns anos: os 58 milhões se transformarão em 40, 30, 20, 10 milhões de envergonhados de, um dia, terem apoiado um golpista meia-boca. Do outro lado, espero que haja 60, 70, 80, 90 milhões de pessoas prontas a perdoar eleitores: aplaudindo a justiça por punir golpistas, mas dizendo aos eleitores arrependidos “se precisar, pode me procurar”. Como cantam Jorge Aragão e Dona Ivone Lara, é preciso dar a chance de esses milhões se redimirem, mudarem, e reencontrarem o amor do qual ficaram carentes ao comprarem um discurso de ódio. Espero que, sem ameaças de golpe, o Brasil possa voltar a sambar.

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