Essa semana, vi em diversos veículos de comunicação a notícia de que as matrículas na modalidade Ensino superior à Distância (EaD) superaram as presenciais em 2024. Os dados são do Censo da Educação Superior 2024, que mostra um total de dez milhões de estudantes matriculados no ensino superior e que a expansão das vagas tem sido em grande parte decorrente do ensino remoto.
A notícia pode ter vários lados. Para alguns os números apresentados podem ser vistos como muito positivos, já que muitas pessoas passaram a ter acesso ao ensino superior no Brasil, independentemente da forma. O Brasil realmente teve um crescimento considerável de pessoas com nível de educação superior. Se lembrarmos que nos anos noventa, pouco mais de 1% das pessoas consideradas em idade referência tinham concluído uma graduação e, hoje, já estamos na casa dos 18%, é inegável que houve uma ampliação considerável do acesso.
Nem vou me estender sobre algumas nuances desses números. Já escrevi em um outro artigo que, ao contrário do que muitos afirmam, o acesso à educação superior não significa necessariamente mudanças estruturais, certeza de vida digna ou redução da desigualdade social. Basta ver que temos doutores morando em barracas e carros na Europa, visto que, mesmo após terem chegado ao mais alto nível de titulação, isso não lhes garantiu condições de sobrevivência digna. Imagine o que acontece no Brasil.
Para mim, esse discurso de que a educação é o caminho mais transformador serve ao capitalismo, que joga no indivíduo a responsabilidade pelo sucesso se tiver essa condição. Para os capitalistas, tudo decorre do mérito e desconsideram que o mais transformador dos caminhos é a distribuição de riquezas. Até porque, os saberes não se concentram apenas na academia e todos eles deveriam ser valorizados, do conhecimento sobre o cheiro do vento, passando pelas artes até as mais complexas formulações matemáticas.
Sendo assim, quero me concentrar em outro aspecto que considero assustador no dado inicial que tratei. A ampliação do acesso ao ensino superior se consolida como um mecanismo de afastamento das pessoas, esvaziamento das relações e de todos os aprendizados que decorrem delas. Já faz um bom tempo que me preocupo com o esvaziamento das universidades federais. Cito as federais como exemplo, porque foi nelas que vivi toda minha trajetória na educação superior.
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Há cerca de um ano, fui numa feira que acontece todas as semanas na Universidade Federal da Paraíba e aproveitei para dar uma volta pelos lugares que circulava na minha época de estudante universitário. Me assustei com o esvaziamento. O Centro de Vivência estava deserto. A Biblioteca Central não tinha quase ninguém estudando e até a maioria das mesas foram retiradas, pela falta de quem as utilizasse.
Tive um misto de nostalgia e tristeza. Foi nesses ambientes que me formei, não falo do ensino formal, mas onde reforcei valores, debati ideias, sonhei com transformações coletivas, defendi o ensino público, lutei pelo restaurante universitário gratuito, enfrentei as privatizações promovidas pelo neo-liberalismo de FHC, nutri empatia e solidariedade por meus companheiros e companheiras.
Na universidade convivi com muitas realidades, foi lá que pude perceber um desenho mais claro da desigualdade, mesmo que de alguma forma todos que estavam ali fossem privilegiados. Mas ao contrário dos colégios, onde os grupos sociais são delimitados por renda e classe mais próximas, com algumas poucas exceções, as universidades permitem enxergar de forma mais ampla e próxima a desigualdade.
Por mais que políticas tenham sido implantadas no Brasil para que pessoas pobres possam cursar universidades públicas, os extratos sociais ainda se evidenciam nas instituições de ensino. O perfil de quem chega a cursos como medicina e odontologia, são bem diferentes de quem faz pedagogia ou serviço social. Isso pode ser constatado de diversas formas, do veículo que chegam para assistir aula ou local onde se alimentam. O ambiente universitário não é um mero espaço reprodutor de mão-de-obra, cumpre papel social importante, evidencia diferenças e permite a formação de grupos em decorrência de como percebem e sentem esses aspectos.
A história está aí para provar o quão importante as universidade presenciais foram para lutas e avanços humanitários. Se o mundo padece de tanta desumanidade, seria muito pior sem essa vivência plural e diversa que o ambiente estudantil proporciona. Para mim é claro, que o incremento do ensino à distância tem muito mais a ver com a ampliação da atividade econômica, que proporcionar formação e consciência crítica.
A educação à distância é um caminho obscuro, que não só distancia as pessoas, mas segrega de forma silenciosa, já que as diferenças não serão percebidas in loco. Digo mais, se o papel das universidades se restringir exclusivamente a formar profissionais para o mercado, não existe qualquer sentido disso ser um custo público. Afinal, o principal beneficiado não pagará um centavo pela formação de um insumo imprescindível para sua atividade e obtenção de lucros. Ainda cabe lembrar, as instituições de ensino formam mais do que o mercado absorve, para que ele use o excesso de contigente como regulador de quanto irá pagar pelo uso dos corpos e mentes.
Me assusta essa situação. Sinto profundamente. Sou cria do convívio plural nas universidades. Aprendi muito mais lá sobre gente e as nuances da injustiça no mundo, que sobre as disciplinas dos cursos que fiz. Não podemos minimizar mais esse processo de desumanização, onde uma grande massa de gente pobre paga pelo conhecimento que mo máximo servirá ao mercado, sem qualquer perspectiva de retorno em forma de uma visão mais humanista e justa do mundo.