No Sudeste, há uma rixa quase amigável entre paulistanos e cariocas que gira em torno de qual cidade seria melhor, qual culinária seria melhor, qual música seria melhor. Acho característico que o funk de São Paulo tenha despontado, na última década, em torno da ideia de ostentação, um reflexo do ambiente competitivo do centro monetário do país. Quando olhamos para o funk do Rio de Janeiro, entretanto, os temas são outros — desde os seus primórdios. Em “Rap da Felicidade” (lançado há 30 anos!), Cidinho e Doca expressavam uma vontade cotidiana: “Eu só quero é ser feliz/
Andar tranquilamente na favela onde eu nasci”. Todo brasileiro, em algum momento, já ouviu esse refrão. E todo brasileiro sabe o porquê desse pedido.

São 30 anos do funk pedindo paz. Nesta semana, como recebem há 460 anos, os cidadãos e cidadãs do Rio de Janeiro receberam guerra. Mais de 120 pessoas morreram, entre traficantes, policiais e inocentes. Depois de 120 mortes, o Rio de Janeiro não está mais seguro. A cidade não está mais limpa, nem mais tranquila. Lembro de uma frase que ouvi há um tempo: “as drogas nunca perderam a guerra às drogas”. 120 mortes depois, nada mudou — a não ser a vida de milhares de pessoas que tiveram um dia aterrorizante, de milhares de famílias que se preocuparam com amigos e parentes que lá moram, de centenas de pessoas que perderam amigos, vizinhos, familiares para uma guerra empreendida por capricho pessoal.
O governador Cláudio Castro (PL), mandante da megaoperação, concorreu ao cargo e ganhou baseado em um discurso bélico, que reflete em grande parte um apelo da direita ao masculinismo — também conhecido como grupo da machonaria. Não é novidade o apelo à violência policial para ganhar voto no estado, uma vez que a segurança pública é tema de maior interesse da população (vide o Rap supracitado). Mas, olhando para o horror que começou na terça-feira, 28 de outubro, parece que o governador agiu apenas para satisfazer seus caprichos e ganhar popularidade naqueles grupos que votam com sangue nas mãos. Em agosto deste ano, 41% da população desaprovava seu governo, enquanto 43% aprovava (Pesquisa Quaest). Esse número, bastante equilibrado, não é o único que devemos olhar. Em pesquisas sobre a eleição para governador em 2026, seus prováveis candidatos aparecem a uma distância bastante significativa do primeiro colocado, Eduardo Paes (PSD), atual prefeito do Rio de Janeiro (Pesquisa Real Time Big Data).
Outro forte indício de que, mais do que a segurança da população, Castro parece querer a popularidade baseada no terror é a sua suposta ligação direta com o deputado estadual Thiego Raimundo dos Santos Silva (MDB), conhecido como TH Joias, que foi preso em setembro em uma investigação sobre lavagem de dinheiro, corrupção, tráfico e negociação de armas com o Comando Vermelho. O jornalista Guga Noblat, recentemente, divulgou fotos em que Castro e TH Joias aparecem juntos, sorrindo, lado a lado. A megaoperação de Castro seria uma tentativa de atacar a organização à qual seu amigo supostamente é ligado? Ou seria mais um modo de criar uma narrativa de guerra cuja única solução está no voto em seus aliados?
Em momentos como este, é bom lembrar que no Brasil não há pena de morte. As mais de 120 pessoas assassinadas não passaram por julgamento adequado. Não tiveram seus direitos respeitados. Tiveram suas vidas retiradas em uma guerra que, via de regra, não lhes cabe — até porque o lucro dela vai para bolsos que estão em segurança plena. O Rio de Janeiro amanheceu um Rio de sangue, com cidadãos carregando corpos para fora das favelas e dos complexos, para que sejam, antes de velados, reconhecidos. Para que os mais de 120 assassinados tenham nome. A história da cidade maravilhosa é marcada por violações de direitos, violência estatal e contraestatal, por bandidagem. Por outro lado, como lembra Luiz Antonio Simas, também é uma história marcada por resistências, batuques e cantos.
Hoje, toca no Rio uma marcha fúnebre, resultado de uma ação orquestrada por um governador inapto. Hoje, ecoam pelas ruas e vielas o Rap da Felicidade: as pessoas só querem andar tranquilamente. Hoje, o Rio chora — e nada parece indicar que depois desta tempestade haverá bonança.