
Belisário é um homem entre quarenta e cinquenta anos, sentado em sua mesa de trabalho, ele para de escrever e começa a recordar. Os papéis avulsos sobre a mesa, repletos de anotações, refletem a vida de Belisário, uma existência devotada ao ofício da escrita. Pensativo, no silente ruminar de suas lembranças, de repente o lápis que Belisário tem entre os dedos cai no chão. O escritor em transe, curva-se até o chão para pegar seu lápis, ao voltar-se para a mesa rústica de trabalho – em um quarto que pode ser em qualquer lugar do mundo -, Belisário vê as imagens fantasmagóricas que o transportam à sua infância. A máquina de escrever portátil, que repousava sobre a mesa, dialoga com as imagens que invadem indômitas a sua mente. O som mecânico da máquina de escrever redimensiona o espaço-tempo do tecido ficcional do escritor.
Mário Vargas Llosa nasce em Arequipa, Peru, em 1936, mas vive os primeiros anos de sua infância em Cochabamba, na Bolívia. Seus pais separam-se nos primeiros cinco meses de casamento. O pequeno Mário cresce em um lar cercado por mulheres, na paisagem andina boliviana e acreditando que seu pai havia morrido. É nesse período que Vargas Llosa faz a maior descoberta de sua vida. Ao aprender a ler, o pequeno Mário descobre o fascinante mundo das letras. São as narrativas de sua tia-avó, a Mamaé, protagonista da peça, A Senhorita de Tácna (onde Vargas Llosa é retratado através do personagem Belisário) que o remetem às primeiras histórias que o envolvem e fascinam. Histórias também contadas nos livros, aqueles artefatos mágicos com estranhos rabiscos que levavam o pequeno Mário para outros mundos, mundos como os dos Três Mosqueteiros que em verdade eram quatro: D`Artagnan, Athos, Porthos e Aramis. Mundos de palavras grafadas mas que tinham o estranho poder de reportar a outros lugares, como os anos seguintes em Piúra, no norte do Peru, onde o avô materno passou a ocupar um cargo público e Vargas Llosa descobriu novos mundos, como o do injustiçado Jean Valjean de Os Miseráveis de Victor Hugo. Lembranças de injustiça e amargor que reportam à memória sombria do dia em que seu mundo caiu quando, aos dez anos, descobriu que o pai não morrera, mas estava vivo e bem na sua frente. O ingresso de seu pai no seu mundo imaginativo foi primeiro um choque e com o passar dos dias uma tortura. Ernesto Vargas Maldonado era um homem prático, não afeito a livros, poesia ou metafísicas. Vargas Llosa não era o filho que ele esperava encontrar, vivendo em um ambiente feminino, afogado em leituras frívolas. O pai de Vargas Llosa via no filho o protótipo do menino desvirilizado pela cultura livresca algo insuportável para o seu mundo de homem prático e assertivo. Vargas Llosa via no pai um intruso que aparecera para castrá-lo de seu mundo imaginativo e rico de experiências. Entre a lei e a ordem representada pelo regresso paterno e a rebeldia indômita do pequeno e imaginativo Mário, resultou que seu pai o enviou para um colégio militar.
Aos quatorze anos, Vargas Llosa ingressa no Colégio Militar Leôncio Prado, por determinação do seu pai. Essa experiência servirá de tema para o seu primeiro romance, A Cidade e os Cachorros (La ciudad y los perros), romance ambientado no Colégio Militar e nas ruas de Lima, um ambiente cruel, violento e corrupto, como a sociedade peruana se descortinava aos olhos do jovem escritor. O título sugestivo é a síntese da trama, cachorros eram como os estudantes se denominavam; a cidade, Lima, com suas ruas, bordéis e o colégio onde se centra a narrativa, uma alusão ao vícios que as instituições reproduzem. Todo o romance nasce do roubo das questões de uma prova, mote que dará o roteiro de uma narrativa que desvelará tipos humanos bem latinos, além do preconceito social de uma sociedade profundamente desigual. A Cidade e os Cachorros, publicada em 1963, é uma narrativa com claro matiz autobiográfico. Ao ser enviado, a contragosto, a um colégio militar, o pai de Vargas Llosa lhe dá o primeiro tema para o seu romance de estreia. Vargas Llosa torna-se escritor ao sublimar seu impulso parricida, na alquimia edipiana dos sentimentos, o abalo provocado pelo autoritarismo paterno empurrou o jovem Mário para a estética literária, a esfera onde os sentimentos e as palavras se misturam. Incidente familiar que produziria não apenas o escritor libertário mas um liberal na dimensão político-ideológica, na defesa intransigente das liberdades civis e políticas.
Belisário há anos é consumido por uma paixão: a de ler e escrever. O vício da paixão literária inoculou sua corrente sanguínea, mas se a paixão pela literatura é candente, a vida com seu peso e responsabilidades, por vezes, faz o escritor vergar sobre sua própria coluna. Belisário mais uma vez pára de escrever a máquina, caminha pelo quarto apertado, sem glórias. Lembra do começo quando decidiu largar a carreira de advogado e abraçou aquilo que julgava ser a sua vocação: a literatura. Anos marcados pela falta de dinheiro, desemprego e crescente descrença em um futuro literário promissor.
Em Lima, nos anos cinquenta, a família de Vargas Llosa vive modestamente na capital peruana. Uma família de classe média, com uma situação econômica precária. Mário ingressa na Universidad Nacional Mayor de San Marcos, a mais antiga das Américas, lá estudando letras e direito, contra a vontade paterna. Aos 19 anos casa-se com Julia Urquidi, mais velha que Vargas Llosa e irmã da mulher de seu tio materno. Essa experiência do casamento com uma mulher mais velha e o difícil começo de um escritor dará o tema para o romance Tia Julia e o Escrevinhador (La Tía Julia y el escribidor), romance autobiográfico que retrata o conflito entre Vargas Llosa e sua família que não aceita sua união com Julia, sua primeira mulher. Para sobreviver, Mário se ocupa de diversas atividades, revisa letreiros de túmulos, ficha livros e faz cobertura de crônica policial para jornais de qualidade duvidosa. Os anos de penúria do jovem Vargas Llosa começam a mudar quando ele recebe uma bolsa de estudos e vai para a Espanha, onde obtém seu doutorado em Filosofia e Letras na Complutense de Madrid.
Vargas Llosa chega a confessar que era uma verdadeira loucura querer ser escritor na Lima dos anos 50, ao recordar as adversidades por ele encontradas. Muito provavelmente o divisor de águas em sua vida de escritor se deu com o encontro que teve com duas figuras-chave: Carmen Balcells e Carlos Barral. Balcells foi sua agente literária espanhola, assim como a de García Márquez e outros grandes escritores latino-americanos. Carmen Balcells mudou a cultura contratual que transformava os escritores em empregados proletarizados das editoras, escravos de contratos vitalícios e economicamente minguados. A agente literária de Barcelona foi responsável pela repactuação de contratos justos e economicamente compensadores para os escritores, sem Balcells os horizontes financeiros do escritor Vargas Llosa seriam estreitos. Carlos Barral, por sua vez, homem de letras e político espanhol, foi um visionário do mundo editorial. Ao assumir a direção da empresa familiar Seix Barral deu uma guinada empresarial que tornou a editora de um empreendimento familiar em uma das mais importantes da Europa, estreitando os laços entre Espanha e América. Foi o responsável editorial pelo boom da literatura latino-americana ao apresentar ao mundo editorial escritores antes marginalizados e invisíveis: os escritores da América Latina, como Julio Cortázar e o próprio Vargas Llosa. Por força e obra de Carmen Balcells e Carlos Barral, Vargas Llosa passou a viver o inacreditável, ser sobejamente pago para fazer aquilo que pagaria para fazer: ler e escrever.
Um dos maiores desafios do escritor, além de conseguir sobreviver daquilo que escreve, é encontrar sua identidade literária. O estilo está para o escritor assim como a conquista da cor está para o pintor. O escritor, no seu processo de construção de quadros e imagens verbais, recorre a um amplo matiz de cores vernaculares, mas o decisivo é a que corrente de estilo aderir, construir, maturar na composição de personagens e narrativas. Belisário recorda-se daquele dia no verão de 1959, quando recém chegado a Paris, comprou um exemplar de Madame Bovary, na rua Saint-Séverin. Da noite insone em que a leitura entusiasmada da narrativa de Flaubert lhe proporcionou um enorme prazer, sobretudo de descobrir que dali em diante identificar-se-ia com o estilo realista na composição de narrativas. Belisário seguiria, como um aprendiz atento, as pegadas de um gigante: Gustave Flaubert.
Em vários relatos Vargas Llosa descreve a importância cardinal de Madame Bovary em sua vida de escritor, da sua identificação com a estética realista, em uma época dominada pelo experimentalismo das estéticas modernistas. Não por acaso a predileção e afinidade de Mário Vargas Llosa recai sobre essa obra de meados do sec. XIX. Madame Bovary é, na opinião de vários teóricos da literatura, uma obra capital, sobretudo na relação entre o romance, como gênero do discurso literário, e a sociedade burguesa em ascensão no final do sec. XVIII e sobretudo no sec. XIX. O romance, a narrativa de ficção longa, surge em um contexto da história social e cultural em que a ideologia individualista molda as relações sociais e econômicas. O individualismo de Descartes e John Locke- vinculado ao nascimento dos modernos Estados territoriais com fronteiras definidas e poder político centralizado- tem no romance uma ruptura com a tradição literária antiga e medieval em que a narrativa épica (epopeia), impessoal e social, dava o tom e a forma das balizas narrativas. O romance, ao retratar o indivíduo e seus dramas cotidianos, rompe com a hegemonia do social e do organicismo próprio da epopeia que caracteriza a literatura dos antigos, exemplificada pela Ilíada, Odisseia e Eneida; ou mesmo a narrativa medieval e moderna pré-industrial, como Os Lusíadas e o Paraíso Perdido. O romance, como gênero, dá voz e visibilidade ao indivíduo que até então era sufocado pela torrente de impessoalidade da literatura, que tinha na hegemonia das convenções, na valorização do épico e universal seus traços característicos.
Madame Bovary do escritor francês Gustave Flaubert (1821-1880) exalta os valores do individual frente ao convencional. Emma Bovary é uma mulher casada com Charles Bovary, um médico provinciano, passando seus dias a ler romances e acalentando o desejo de viver uma vida de prazeres, amores e luxúria. Paris é o símbolo desse modelo de vida prazerosa, encarnada pelos ideais do liberalismo que exaltam o indivíduo, sua liberdade e gostos em detrimento do convencional, das regras e costumes sociais. Não por acaso a narrativa de Flaubert centra-se na mulher e no adultério. Ao colocar em tensão o desejo de Emma Bovary de viver uma vida prazerosa e plena, por um lado, e de outro os deveres conjugais que se esperam de uma mulher casada em um ambiente provinciano, o que o escritor francês faz é por em choque dois modelos sociológicos. Aquilo que o sociólogo Émile Durkheim chamou de solidariedade mecânica: caracterizada pela predominância da tradição, família e religião na codificação das regras de trato social; e a solidariedade orgânica em ascensão, com a dissolução da tradição e dos valores da família convencional. O liberalismo com seu traço indelével de solidariedade orgânica tem na separação entre religião e política e na emancipação feminina alguns dos seus postulados determinantes. Não por acaso, a mulher e o adultério constituem a temática de outras narrativas do sec. XIX, como Anna Karenina do russo Leon Tólstoi, o Primo Basílio do português Eça de Queirós e a nossa machadiana Capitu.
Em alguma medida todas essas obras são tributárias de Madame Bovary, pois é nela que Flaubert introduz no romance o discurso indireto livre, com um narrador onisciente que busca o distanciamento como imparcialidade. O cuidado na forma estética e a composição de tramas psicológicas aportam definitivamente no discurso literário como traços do individualismo moderno.
A máquina incansável de Belisário, na reclusão de seu quarto perdido – como na mansarda pessoniana – tem no mistério da composição traduzida pelas batidas mecânicas da máquina de escrever, um de seus maiores e lancinantes enigmas. Belisário já se flagrou várias vezes intrigado em como surgem aquelas histórias, de qual recôndita memória do seu ser emergem aqueles personagens que alimentam suas tramas imaginativas. Por que as pessoas têm necessidade de contar histórias? Fabular o seu cotidiano? Viver outras vidas? Emular a realidade? Talvez uma vida só não seja o suficiente para abarcar o enorme desejo humano de viver e conhecer. A narrativa é uma necessidade individual e coletiva, por ela constroem-se significados e se adensam identidades. A fabulação é uma dimensão inalienável da nossa humanidade, conclui Belisário que volta a escrever.
O estilo de um escritor não é indiferente ao estilo de época no qual ele está inserido, nem às influências a que ele está inevitavelmente sujeito. Em várias passagens de sua longa obra literária, Vargas Llosa problematiza sobre a natureza da narrativa e os mecanismos do processo de criação, a peça dos anos 80, A Senhorita de Tácna, talvez seja a mais explícita delas. Para Vargas Llosa a literatura é a transubstanciação do cotidiano, aquilo que permite a superação- pela imaginação e fantasia- do que o cotidiano tem de gris e repetitivo. Uma transubstanciação que muda o próprio indivíduo, sua sensibilidade e possibilita a atuação mais consciente no mundo. Essa percepção da função da arte em Vargas Llosa não é desvinculada do seu momento histórico. A obra de Vargas Llosa integra o movimento conhecido como o boom da literatura latino-americana. Movimento antes de tudo editorial que leva ao mercado do livro europeu a literatura dos escritores da América Latina. Movimento que tem também um enraizamento político, os anos 60 e 70 do sec. XX marcam o auge da guerra fria e das ditaduras na América do Sul. A Revolução Cubana a as convulsões políticas na América Latina animam a estética literária que também adentra em debates políticos. A obra de escritores como a do colombiano Gabriel García Márquez (1927-2014), do argentino Julio Cortázar (1914-1984) ou do paraguaio Augusto Roa Bastos (1917-2005), dão o tom dessa nova estética verbal latino-americana, em que o inverossímil adquire realidade e o cotidiano se desanuvia na irrealidade de sua insignificância. A novela Cem anos de solidão (Cien años de soledad) de García Márquez é a obra símbolo dessa geração. O que talvez a tenha feito cair tanto no gosto de norte-americanos e europeus, seja o mito de uma América Latina passional, extremada e irracional tão bem encarnada pelo realismo fantástico da saga dos Buendía. Algo que agradou ao gosto europeu que reivindica exclusividade sobre a razão e o equilíbrio, não obstante tenham criado a guilhotina e Auschwitz.
As palavras grafadas na folha de papel colocam Belisário diante de um de seus personagens mais emblemáticos, o jornalista míope de A Guerra do Fim do Mundo. No solo seco e pedregoso do sertão baiano, Belisário imagina como se sentiria na pele de Euclides da Cunha, cobrindo para o jornal O Estado de São Paulo o conflito mais expressivo das contradições da história da América Latina. Assim como o jornalista míope, Belisário sente o rufar dos canhões do exército brasileiro ao tatear pelo chão em busca dos óculos perdidos, ao seu redor um Brasil e uma América Latina míopes e desencontrados.
Se o boom da literatura latino-americana tem em “Cem anos de solidão” a melhor encarnação da estética do realismo fantástico; a obra, talvez a mais expressiva de Vargas Losa, “A Guerra do Fim do Mundo”(La guerra del fin del mundo) constitui-se em um diálogo e reinterpretação do maior épico da literatura das Américas, na opinião de alguns: Os Sertões. Se Madame Bovary de Flaubert está na raiz da estilística de Vargas Llosa, os Sertões do brasileiro Euclides da Cunha é aquilo que permite a Vargas Llosa tornar essa estilística épica e lançar uma reflexão política que transcende o conflito de Canudos, espraiando-se por toda a América Latina.
Para escrever A Guerra do Fim do Mundo, Vargas Llosa investiu quatro anos de sua vida em estudos e pesquisas, parte desse tempo in loco no sertão da Bahia, consultando arquivos e dialogando com historiadores, contando com a ajuda prestimosa de amigos como a escritora brasileira Nélida Piñon. A força épica de Os Sertões trouxe para a estética da Guerra do Fim do Mundo a dialética entre ficção e história, onde a ficção foi usada para potencializar aquilo que o discurso historiográfico não é capaz de cobrir. As lacunas de documentos e fatos encontram na imaginação sua ressignificação, um redimensionamento hermenêutico que desvela o drama individual e psicológico por trás da grande narrativa histórica. Em Canudos, a barbárie e a civilização se encontram. Nas pegadas do Conselheiro, ao logo do vaza-barris, a história de séculos de ocupação e expansão do capitalismo nas Américas sintetiza sua contradição paroxística. Entre o rugir de milhares de soldados em um arraial de Canudos destruído, a força da pena de Euclides da Cunha proporcionou a Vargas Llosa suas melhores páginas literárias.
A estética verbal, na obra de Vargas Llosa, dialoga com a política. A clara percepção da vinculação entre ação e discurso, na tessitura do espaço público, emerge em obras como a já citada A Guerra do Fim do Mundo, mas em tantas outras como Conversa na Catedral (Conversación en la Catedral), Lituma nos Andes e até em sátiras como o inventivo Pantaleão e as Visitadoras. Em Vargas Llosa literatura e política dialogam, complementam-se. Talvez por influência de suas leituras de Sartre, outro referencial intelectual do escritor peruano, a literatura não se revela alheia à realidade social em seu entorno, fechada em um experimentalismo linguístico esquizofrênico. Ao adentrar nas estruturas e na microfísica das relações de poder, a literatura de Vargas Llosa se enriquece também esteticamente, não cai no panfletismo, antes adensa a percepção de uma América Latina onde pululam ditaduras e insuspeitas formas de opressão. Daí a síntese lapidar da Academia Sueca, ao laureá-lo com o Nobel em 2010: “Por sua cartografia das estruturas de poder e suas imagens vigorosas sobre resistência, revolta e derrota individual.” Estética da criação verbal que se desdobra em ativismo político com reportagens para o jornal El País e a interlocução regional com denúncias de violação à democracia por ditaduras populistas como as venezuelanas de Chávez e Maduro, ou o fujimorismo em sua terra natal. O liberalismo político que está na base ideológica de sua estética literária também sofreu a influência de Karl Popper e sua tese da Sociedade Aberta e seus Inimigos. O liberalismo, como já observado, está na base da ascensão do romance como forma estética literária dominante na modernidade. Vargas Llosa foi um exímio artífice da arte do romance, conscientemente ou não, essa arte nasce em berço liberal e vincula-se à ascensão de uma classe social: a burguesia. Na medida em que Vargas Llosa foi conquistando a glória literária, afastou-se de sua origem marxista e as influências existencialistas de Sartre, deixando-se seduzir pela filosofia política liberal de Popper e Friedrich Hayek. Em uma perspectiva materialista e histórica, cada classe social tem sua ideologia e a ideologia dominante é a da classe materialmente dominante. Popper e Hayek são inventivos e inteligentes mas a inventividade e a inteligência não conseguem ocultar as contradições estruturais do capital e da sociedade capitalista. O brilhantismo literário de Vargas Llosa não foi suficiente para impedir que ele também fosse seduzido pelas armadilhas do mercado como a panaceia dos problemas do subdesenvolvimento. As contradições da América Latina, tão bem notadas e retratadas em A Guerra do Fim do Mundo, não o permitiram ver que elas nascem da expansão e globalização do capital que anexou a América Latina como colônia de exploração. Um lugar destinado a ter suas riquezas naturais e força de trabalho exploradas no processo de internacionalização do capital. O eurocentrismo literário inoculado pelo fascínio de escritores franceses, como Flaubert e Victor Hugo, talvez esteja na raiz de sua miopia política tardia, não obstante seu inegável brilhantismo estético literário.
Ao colocar o ponto final em mais uma novela, Belisário tem aquele olhar perdido de perplexidade sobre o futuro incerto e a dúvida sobre a receptividade de mais um texto. Belisário já não é mais um homem de meia idade, o tempo que tudo transforma e ressignifica o encapsula em um quarto imaginativo de criações e memórias. Vargas Llosa é agora um homem de oitenta e nove anos, com a pena entre os dedos Belisário se diluiu em um senhor octagenário, o homem se converteu em signo literário. E assim, Vargas Llosa viveu… Legando-nos sua obra como signo e metáfora que nos convida a ingressar nessa imemorial tradição da literatura. De Homero, Cervantes, Flaubert, Victor Hugo, Euclides da Cunha, Faulkner ao boom da literatura latino-americana: uma tradição humanista.