Dra. Desinfluencer. Jornalista e doutora em Informação e Comunicação em Plataformas Digitais pela Universidade do Porto (PT). Autora do livro Flores nos Canteiros (A União, 2018). Interesse em temas sobre feminismo, viagens, comunicação e redes sociais.
Dra. Desinfluencer. Jornalista e doutora em Informação e Comunicação em Plataformas Digitais pela Universidade do Porto (PT). Autora do livro Flores nos Canteiros (A União, 2018). Interesse em temas sobre feminismo, viagens, comunicação e redes sociais.
Solteirice feminina vira febre, mas febre é sinal de infecção
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(Foto: Flávia Lopes/Autorretrato)

Estar solteira está na moda. Bons tempos para ser uma solteira! (Sarcasmo ativado)

Um artigo publicado na Vogue Britânica, da escritora Chanté Joseph, diz que ter um namorado agora é constrangedor. O texto começa explicando que, depois de uma onda de conteúdos de influenciadoras centrados em seus namorados, a tendência agora é não mostrar que está comprometida.
E, convenhamos, é embaraçoso mesmo ficar se gabando do seu namorado, levantando a bandeira de que a maior conquista de uma mulher é ter um homem.

O movimento virou febre nas redes sociais. Mas febre é sintoma de infecção.

A febre

Ainda no artigo, Joseph diz que muitas mulheres preferem não mostrar o namorado nas redes sociais. São lances sutis nos stories: uma taça de vinho, uma mão no volante… Mas Chanté Joseph afirma que esse efeito de postar apenas partes, e não o todo, dos homens não é só porque é “vergonhoso” ter um namorado, mas também para proteger o relacionamento da inveja. Outras mulheres simplesmente não o fazem porque não é mais tendência centralizar o conteúdo em homens.

Ao ler o artigo, refleti sobre como a preocupação com a privacidade do relacionamento, esse desejo de proteger o amor com o alecrim dourado longe dos olhos alheios, pode também esconder um certo receio de ficar sozinha. 

Ainda assim, esse gesto revela uma transformação importante: a descentralização do homem como eixo da vida feminina.

Principalmente porque muitas das mulheres que responderam a Joseph também disseram que se sentem envergonhadas de dizer que estão namorando nas redes sociais.

O tema viralizou, principalmente no TikTok. Na minha for you (TikTok) e na timeline (Instagram) apareceram várias produtoras de conteúdo e influenciadoras comemorando essa trend, porque elas estavam solteiras e, pela primeira vez, isso é visto como vitória. Eu também celebrei. Meu algoritmo sabe muito bem que jogo do lado da solteirice.

Isso é um sinal de uma mudança paradigmática, mas também uma faca de dois gumes. Uma moeda com dois lados.

Quando o corpo tem uma febre, é sinal de infecção. Nesse caso, mais de uma.

As infecções

Se por um lado há de se comemorar a descentralização do homem na vida feminina, como um marco do crescimento da conscientização pregada pelo feminismo (equidade de gênero e tudo mais) por outro, existe uma preocupação em se comemorar o fato de as mulheres estarem preferindo ficar cada vez mais sós. 

Essa moda, que podemos chamar de febre, é um sintoma de duas infecções que se interseccionam: o neoliberalismo e o patriarcado.

É certo que a sociedade se incomoda muito mais com uma mulher solteira e feliz do que com uma mulher num relacionamento de merda. Imagina o tanto de relacionamento ruim, abusivo, tóxico, representado em belas fotos instagramáveis, não é mesmo?

Nos jantares e reuniões de família, quem é solteiro, principalmente as mulheres, precisa lidar com as perguntinhas infames: “E os namoradinhos?”. Quando, na verdade, o que a gente quer mesmo é falar sobre trabalho, viagens, geopolítica ou sobre os problemas dessa economia mundial avassaladora que impede a justiça social.

Irritante!

Por isso, quando vi a trend de que postar nas redes sociais o seu romance de conto de fadas ficou cafona, comemorei. It’s cool to be single!

Mas o fato de comemorar a solidão (ou solitude, para os mais poéticos e otimistas, para não dizer brega),  revela um sintoma de uma estrutura social adoecida: um sistema patriarcal que oprime as mulheres nas relações amorosas.

Somos progressistas ou vítimas de uma sociedade adoecida que lida com os sintomas e tenta tomar posse deles, revertendo o sentido real para fazer parecer positivo como modo de sobrevivência?

Acho que seguimos fazendo limonadas com os limões que a vida nos dá. Mas continuamos a beber uma bebida ácida, com altas doses de individualismo adoecido vendido como “empoderamento”, porque “é o jeito”. C’est la vie. It is what it is. E o coração vai endurecendo.

Daí vem a máxima: “antes só do que mal acompanhada”. Mas, na verdade, todas nós queríamos mesmo era estar bem acompanhadas com um parceiro que desse o seu máximo, para além do mínimo que ainda é vangloriado pela sociedade.

Porque, convenhamos, lavar a louça, partilhar as tarefas de casa, dividir as contas, apoiar nos momentos de necessidade, vibrar pelo sucesso da parceira, respeitá-la, tudo que é vangloriado quando um homem faz, é apenas o que uma mulher mediana faz em qualquer relacionamento.

Esta curva no comportamento da mulher hétero atual, que desvia do homem como objeto central da nossa vida, é também um alerta para os homens: por que será que vocês, homens, estão sendo tirados desse centro estético instagramável e também do centro das nossas vidas?

Para mim, esse movimento diz muito mais sobre as consequências da masculinidade tóxica, das estruturas patriarcais que nos oprimem e do machismo que nos mata, física e psiquicamente. Essa febre de esconder o relacionamento é mais um sintoma da exaustão das mulheres lutando para maquiar relações com homens que fazem o mínimo.

Então, homens, se vocês prezam pela manutenção da espécie humana, sugiro que mudem, repensem seus modus operandi nas relações amorosas. Vocês não são mais o prêmio.

Ainda lembro o fatídico tempo em que nós, mulheres, vivíamos implorando para sermos assumidas nas redes sociais… coisas que aconteciam nas antigas civilizações, nas atualizações de status de relacionamento do velho Facebook.

Hoje, parece que o jogo virou, não é mesmo?

Mas, a falta de medo de ficar só e essa trend de comemorar estar solteira, depois que ficou over postar seu alecrim dourado nas redes sociais, ainda são sintomas de outra infecção, uma infecção ainda mais generalizada: o neoliberalismo, que vende a ideia de empoderamento através do individualismo.

Não, ninguém é feliz sozinho. Mas podemos, sim, estar solteiras e tentar ser felizes quando as condições da vida em casal não são favoráveis. Uma coisa não tem nada a ver com a outra. A sociedade é coletiva e as relações sociais são necessárias para a sobrevivência da espécie humana. Mas, se privar de certos tipos de relação também é instinto de sobrevivência, porque chegamos a um ponto em que falar de relacionamentos nem sempre, e na maioria das vezes, não é falar sobre amor, mas sobre dor.

Dizer que nós, mulheres, não temos mais medo de ficar só é um reflexo do neoliberalismo, na medida em que nos privamos das relações sociais por medo e passamos a focar apenas nos ganhos capitais, na ilusão de encontrar a satisfação e a felicidade pessoal através do trabalho, muitas vezes num trabalho que explora até a exaustão. É um mito. E, como todo mito, tem seu fundamento arenoso.

Claro que devemos focar no nosso crescimento profissional e financeiro, principalmente para não depender de um parceiro e, quando um caso de violência doméstica acontecer, termos a condição de sair desse lugar. Um exemplo nem tão extremo assim, dado o número altíssimo de casos de violência doméstica praticados por homens.

Mas, mais do que isso, não devemos esquecer a grande causa em questão: a equidade e a justiça social. Porque, mais uma vez, as dores das mulheres estão sendo utilizadas como capital discursivo para o fortalecimento da estrutura capitalista que perpetua desigualdades.

Embora nós, mulheres, precisemos perder o medo de ficar só (já que muitas vezes nos mantemos em situações de violência por esse receio), celebrar o individualismo não é uma causa feminista. 

Nesse sentido, minha crítica é à forma como o sistema transforma a solidão em produto de empoderamento. Apesar de que eu celebro, neste momento, minha solteirice, mas entendo que uma andorinha não faz verão. 

Como diz Elizabeth Fox-Genovese, no livro Feminism Without Illusions: A Critique of Individualism: “Ao celebrar o eu como a fonte suprema da verdade e da autoridade, perdemos de vista os laços sociais que tornam qualquer eu possível.”

Ser só é triste, apesar da solidão ser necessária. Mas ser solteira nem tanto. É preciso saber diferenciar essa linha tênue entre solidão e solteirice, entendendo também que esse “empoderamento” é um sintoma de uma sociedade adoecida pelo discurso neoliberal e pelas opressões patriarcais. Até porque podemos estar solteiras mas rodeadas de uma rede de apoio fenomenal chamada de: amigos, ou família. Solteira sim, sozinha nunca!

Síntese da diagnose

Feito o diagnóstico dessas doenças sociais (neoliberalismo e patriarcado) resta uma diagnose não muito otimista, mas crua: mulheres deixarem de postar fotos dos seus relacionamentos nas redes sociais é um sintoma de relações “amorosas” adoecidas, em que o recurso para sobrevivência é a apropriação do discurso neoliberal de empoderamento e individualismo, uma falácia que não é feminista, o que desencadeia cada vez mais isolamento e foco no acúmulo de capital, perpetuando ainda mais desigualdades, seja de gênero, de classe ou de raça.

No final, as pressões e opressões recairão sempre sobre nós: se postamos fotos dos namorados, somos cafonas; se não postamos somos as mal-amadas. Fato é que: ser solteira não é solução, é consequência. 

Tratamento dos sintomas

De maneira clara: o tratamento para um sistema neoliberal e para a estrutura patriarcal seria mesmo um novo Big Bang. Só mesmo explodindo tudo e nascendo outra humanidade. Mas dá para driblar os sintomas na medida do possível, tipo tomar Tylenol para controlar a febre.

Por enquanto, a manutenção do meu réu primário como mulher hétero e cis é seguir resistindo à dependência dos homens focando sim nos meus objetivos profissionais e pessoais. Ainda assim, o verdadeiro ideal não está em se isolar, mas em lutar pela justiça social, pela equidade de gênero e pela união das causas dos oprimidos.

O amor existe, é possível, mas não se meter em cilada é essencial, para mim e para a manutenção da espécie.

Mas, meu lema agora é: que essas doenças sociais não nos envenenem. Que nunca sejamos as oprimidas iludidas com o sonho de nos tornarmos opressoras.

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Palavras-chave
equidade de gênero