Dra. Desinfluencer. Jornalista e doutora em Informação e Comunicação em Plataformas Digitais pela Universidade do Porto (PT). Autora do livro Flores nos Canteiros (A União, 2018). Interesse em temas sobre feminismo, viagens, comunicação e redes sociais.
Dra. Desinfluencer. Jornalista e doutora em Informação e Comunicação em Plataformas Digitais pela Universidade do Porto (PT). Autora do livro Flores nos Canteiros (A União, 2018). Interesse em temas sobre feminismo, viagens, comunicação e redes sociais.
O problema é a linha do Equador
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Cena do filme O Agente Secreto
Cena do filme O Agente Secreto (Foto: Divulgação)

O mundo foi dividido em Norte e Sul na esperança de ser igual. Em latim, “Circulus aequator diei et noctis” quer dizer “círculo que iguala o dia e a noite” e vem de uma ideia da Antiguidade: uma linha imaginária que dividia a Terra em duas metades e separava o dia da noite em proporções iguais. O atual conceito da linha do Equador surgiu em 1590, com a projeção de Mercator (projeção cartográfica cilíndrica que preserva as formas dos territórios, mas distorce suas dimensões, especialmente em latitudes altas), que dividiu o mundo em dois hemisférios.

Mas, da Antiguidade para cá, os intervalos de alternância da presença da luz solar no planeta ganharam outros significados. 

Se há hierarquias culturais, políticas e econômicas entre os hemisférios Norte e Sul, como aponta Walter D. Mignolo no livro “The Darker Side of Western Modernity: Global Futures, Decolonial Options”, e outros tantos autores, há também hierarquias relativas às proximidades da linha imaginária que corta o mundo, a linha do Equador.
Quanto mais perto da linha do Equador, menos valor geográfico se tem. O grau zero parece mesmo que marca.

Dentro do próprio Brasil, é assim que funciona, e o filme O Agente Secreto, do diretor Kleber Mendonça Filho, mostra bem isso. Eu, que sou de perto da linha do Equador, percebi logo.

O Agente Secreto ganhou o mundo e levou as maiores premiações em Cannes neste ano, apresentando um suco de brasilidade.
Para quem viu o filme, a obra é, em geral, brasileira.
Mas é mais. É do mundo, já que toca em uma agenda internacional necessária para o debate atual: repressão, opressão, jogos de poder entre elite e proletariado, abuso policial, governos corruptos etc. (falo vagamente para não dar spoiler).Em entrevista ao Máxima, o próprio Kleber Mendonça Filho pontuou estar fazendo um filme para o mundo, não só para o Brasil.

Mas, para quem é do Nordeste, como eu, o filme ressoou em outro lugar. Se a obra é o puro suco do Brasil, o açúcar desse suco é o Nordeste.

Frevo, sotaques porretas e expressões arretadas. Um povo alegre e despretensioso. O Nordeste foi mostrado de forma natural porque foi atuado de forma natural, com um elenco cheio de nordestinos que não forçaram o seu falar.

Vou citar alguns: Alice Carvalho, com seu papel forte e olhar incisivo; Robério Diógenes, com sua brilhante atuação como o delegado estúpido; Geane Albuquerque como a cômica servidora pública comissionada; Kaiony Venâncio, o matador que faz trabalho de bicho; Joálisson Cunha, o frentista irreverente. Destaque também para Cely Farias que chora dramaticamente em uma cena marcante, Buda Lira que atua como se pertencesse ao seu papel, Suzy Lopes com sua presença em cena, e,claro,  Dona Tânia Maria, como Sebastiana, a figura mais autêntica de todo o filme. Com seu cigarro, voz rouca e, acredito, algumas improvisações fluídas que definiram algumas cenas, ela é o retrato daquela tia cômica de coração gigante, que fala o que quer, na hora que quer. 

O Nordeste esteve presente desde a perspetiva do diretor pernambucano, ao protagonista,  Wagner Moura, que merece distinção pela sua atuação. 

Eu como devota nordestina que sou, ao assistir o filme, me senti em casa. Reconheci a minha gente em cada um daqueles personagens. Que bom ver atuações sem sotaque forçado, com gente da terra. 

Mas, do mesmo jeito que foi mostrada a nordestinidade em seu habitat natural, numa capital nordestina megalomaníaca como Recife, onde o rio Capibaribe se junta ao rio Beberibe para formar o oceano, o filme também mostrou os problemas de se estar perto demais da linha do Equador.

Ao meu ver, os trópicos parecem lepra. Tudo que é de perto da linha do Equador tem menos valor.
A igualdade idealizada na Antiguidade nada vale nos dias de hoje.
De que adianta o sol ser para todos, se a terra que ele queima mais é sempre a mais esquecida?

O Agente Secreto parece uma cebola: tem muitas camadas, finas, às vezes transparentes de tão sutis.
O filme relembra a época da ditadura brasileira, a opressão vivida por pessoas homoafetivas, os refugiados perseguidos, não só do Brasil, mas também de Angola, além dos refugiados judeus; retrata as relações de poder da polícia; dá um contorno folclórico à narrativa com um esoterismo tão brasileiro, ao trazer a história da perna cabeluda; e revisita notícias tristes, como o caso do menino Miguel, deixado sozinho enquanto a mãe cumpria o serviço de passear com o cachorro da patroa.

 São muitas nuances.
A cada piscar de olhos, Kleber toca em alguma ferida necessária que precisa ser reaberta e diagnosticada antes que vire necrose pelo esquecimento, como aconteceu com a perna na boca do tubarão.

A nordestinidade e a temática de ressaltar o conhecimento, a cultura, a história e as  vivências nordestinas é uma característica marcante na obra de Kleber. A maioria dos seus filmes são sempre ambientados em Recife, e o filme Bacurau retrata uma cidade no sertão nordestino que não existe no mapa. Mais uma metáfora gritante para a invisibilidade das terras próximas aos trópicos da linha do Equador, o Nordeste.

No filme O Agente Secreto, algo que me marcou foi a terceirização do trabalho sujo para a mão de obra local nordestina e o descrédito e desqualificação da ciência feita nas universidades do Nordeste, não por estrangeiros, como é de se esperar, mas por um próprio Brasil, representado por um poder público corrupto e localizado geograficamente no Sudeste.

Mas é uma obra de ficção, né? Qualquer semelhança com a realidade é mera coincidência (Sarcasm Alert).

O Agente Secreto confirma minha teoria: quanto mais perto da linha do Equador, mais perto do grau zero. Menos valor nessa escala geopolítica que fraciona a Terra.

Mas, a culpa é dos trópicos! Cortem a linha do Equador! Para termos melhor matador, pesquisador, cientista, polícia ou ladrão, basta tirar essa maldita linha do mapa.

O bom de O Agente Secreto é que Kleber, nordestino e recifense, mandou para os ares essa linha que corta o mundo. Com sua obra, ele atravessou oceanos, mostrando que, quando a arte é impossível de ignorar, não há delimitação de hemisfério que impeça sua projeção mundial. (Para mim, quanto mais periférica, melhor.) O cinema é mesmo para dar visibilidade ao que não pode ser esquecido.

O filme O Agente Secreto, e o restante das obras de Kleber, mostra que, a depender da origem da perspetiva, o oceano realmente nasceu do casamento dos rios Beberibe e Capibaribe. E é com essa crença megalomaníaca que jogamos uma premissa pro universo: Com toda essa maravilha artística acontecendo nos trópicos, quem sabe o Sul não vire Norte e o sertão não vire mar?

Os ventos do Norte não movem moinhos, mas nos rios do Nordeste navegam muitas histórias, potenciais obras de arte que precisam atravessar oceanos. 

O Agente Secreto abre uma nova cartografia para o cinema brasileiro, com uma rota traçada por um povo arretado que não se importa com as linhas que dividem o mundo. Como diz o cantador Flávio José, na composição de Flávio Leandro: “eu quero é cantar o Nordeste, que é grande e que cresce, e você não conhece, doutor.” O mundo é grande e o destino nos espera.

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