Anderson Pires é formado em Comunicação Social – Jornalismo pela UFPB, publicitário e cozinheiro.
Anderson Pires é formado em Comunicação Social – Jornalismo pela UFPB, publicitário e cozinheiro.
Cansa, mas a gente segue
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Foto: Reprodução Livro Mia Couto – Poemas escolhidos

Gostaria de ter talento e sensibilidade para escrever poesia. Talvez, por excesso de ranço e objetividade extrema, me restou a capacidade de falar sobre as coisas chatas e desagradáveis do mundo. Por esse mesmo motivo, escrevi um livro com artigos sobre as mazelas produzidas no período do governo Bolsonaro. O título é sugestivo: Ele Não vai gostar de ler.

Seria bom que pudesse usar minha verve para tratar de temas mais empolgantes. Teria muito prazer em analisar as bases socialistas que levaram o mundo ao extermínio da pobreza. Seria igualmente prazeroso, expor as relações diretas entre distribuição de renda, redução da desigualdade e diminuição da violência contra mulher, de crimes de racismo e da homofobia. Afinal, são pautas que acredito e que se amparam nos mais admiráveis estudos no campo da sociologia, economia e filosofia.

Mas tratar de temas assim, só seria possível no campo da ficção ou em teses acadêmicas. Como escrevo sobre o factual, estou condenado à conjuntura cansativa e alguns exercícios de futurologia sobre os reflexos dos fatos. Em suma, sou uma espécie de tradutor das pelejas diárias e porta-voz do apocalipse. Uma mistura nada poética. 

Se do ponto de vista pessoal, não ter talento para a poesia me frustra. Por outro lado, posso incorporar o cosplay de Pollyanna e enxergar com otimismo: quanto pior estiver o mundo e mais merda aconteça, terei conteúdo em abundância para exercer meu ofício. Sem contar que ainda posso fazer o “jogo do contente” e imaginar que os textos terão impacto positivo entre os que tenham alguma concordância.

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Pois é, por mais exercício que possa fazer, o mundo tem me deixado extremamente cansado. Por isso mesmo, tenho passado por alguns bloqueios e fico desestimulado para tratar cotidianamente de tantos acontecimentos ruins e desagradáveis. Posso até resmungar pelas redes sociais, mas tenho preferido ficar calado. Barulho mesmo, só quando toco minha bateria.

O mais grave é que não têm aparecido válvulas de escape, que sirvam de aspiração e alento. Há alguns anos atrás, ainda era possível sonhar com alguns bolsões de humanismo e vida digna. Sonhava com um cafezinho nos jardins de Paço D’Arcos em Portugal, regado por bons papos entre amigos com utopias parecidas. Essa possibilidade me parece remota, diante da onda de xenofobia e o brutal empobrecimento em toda Europa. Bata ver, as cidades estão cheias de pessoas morando em barracas e carros.

O outro alento, que em muitos momentos recorro como forma de ver o mundo com menos dureza, é a arte, no singular mesmo. Prefiro assim, como forma de unificar e preservar. Já que o mundo pós-moderno é farto em subdivisões e categorias para as artes, que servem muito mais para distorções e ausências conceituais, do que propriamente para ampliar a liberdade criativa. Dessa forma, sou obrigado a sempre remeter ao passado.

Curiosamente, apesar do mundo estar nesse momento tão ruim, temos uma produção de música, cinema, artes plásticas e outras formas de expressão, majoritariamente, impregnadas pela obsolescência, feitas para consumo e descarte, e, também, pela pós-modernidade. Resta muito pouco de produção artística, que questione as agruras da humanidade e liberte nossas mentes da angústia, mesmo que por alguns momentos.

Por fim, os que têm condições recorrem a terapia e viagens. Na falta de recursos, algumas lapadas de álcool que possam trazer calmaria ou gerar euforia, podem funcionar para esquecer um mundo tão cruel. Da minha parte, sigo na contradição em escrever. Se a ausência de poesia me frusta, a crônica cotidiana me cansa, sendo assim, me sinto parte de um poema de Mia Couto: “sou apenas um tradutor de silêncios…. sou um soldado que se apaixona pelo inimigo que vai matar”.

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