
Minha história com Luiza Erundina começa muito antes de eu saber direito o que é política, direitos humanos ou militância. Foi na Casa do Menino, no Santo Antônio, em Campina Grande, lá pelos idos de 1999 ou 2000, quando eu era um adolescente gordinho, tímido e cheio de espinhas, o tipo de criatura que acreditava que doce de leite resolvia qualquer crise existencial.
Eu “trabalhava” como tradutor improvisado da inesquecível irmã Bernadete (Zuleide) Porto, a irmã Porto, grande amiga de Erundina, e que hoje, lá do céu, deve continuar colocando ordem nas coisas com aquele sorriso manso e aquela autoridade que nenhuma casa legislativa jamais terá.
Na Casa do Menino, eu também convivia com outras mulheres extraordinárias: irmã Elizabeth, serena como um entardecer no Cariri, com quem eu treinava meu francês ruim; irmã Aída, sempre prática, doce e firme na causa social; e minha amada tia Leonor, Tia Lolô, hoje em Natal, que nos guiava como quem mistura fé, responsabilidade e afeto no mesmo caldo.
Minha missão era acompanhar beneméritos alemães e holandeses, apresentar Campina Grande, traduzir o inglês macarrônico deles e agradecer pelas doações que mantinham o trabalho da Casa, que até hoje cuida de centenas de crianças campinenses.
No fim, meu pagamento era um pote de doce de leite artesanal, moeda mais valiosa que bitcoin e mais sagrada que salário mínimo.
Até que, um dia, Erundina apareceu.
Foi visitar irmã Porto, reencontrar a amiga com quem ajudou a fundar a Faculdade de Serviço Social da UEPB, semente do que viria a ser a universidade inteira. Eu observei tudo em silêncio, com 14 ou 15 anos, achando que a política era algo muito distante de mim. Mas irmã Porto, tomada por uma alegria rara pelo reencontro com a amiga deputada, decidiu triplicar meu salário e me recompensar com três potes de doce de leite, que eu devorei como quem devora o futuro.
Foi assim que começou: sem discurso, sem selfie, sem solenidade: só açúcar, admiração e afeto.
O tempo passou e aquele adolescente cresceu. Em 2018, já advogado popular, me tornei o primeiro perito-coordenador do Mecanismo Estadual de Prevenção e Combate à Tortura da Paraíba, órgão criado a partir de compromissos assumidos pelo Brasil com a ONU. Passei a visitar presídios, ouvir denúncias, registrar violações e pressionar o Estado por mudanças.
Depois, como conselheiro e presidente do Conselho Estadual de Direitos Humanos, continuei na mesma luta.
Foi na solenidade de posse no Mecanismo que reencontrei Erundina. Ela recebeu uma medalha do governo do Estado e tivemos tempo de conversar, de verdade, sobre garantias fundamentais, sobre o que significa lutar pelo outro, sobre o preço e a beleza da militância. Era como se aquele encontro de 1999, tímido e açucarado, tivesse finalmente chegado à completude.
Em 2020, escrevi um artigo celebrando sua parceria com Guilherme Boulos, a ponte entre São Paulo e a Paraíba, entre a luta urbana e a raiz sertaneja, entre a história dela e as origens campinenses dele, já que sua mãe, Dra. Ivete Castro, é filha de Campina Grande.
A história dos dois sempre me fascinou: uma paraibana que virou símbolo de dignidade na política brasileira, ao lado de um líder que carrega Campina no sangue e que, naquela eleição, disputavam juntos a prefeitura da maior cidade do país, a qual ela já tinha administrado décadas antes, sendo até hoje considerada a melhor prefeita da história paulistana. Quando escrevi aquele artigo, parecia que eu estava devolvendo ao mundo um pouco do que ela tinha me dado lá atrás, ainda sem saber.
Fiquei muito tocado porque recebi o agradecimento direto de Boulos e uma mensagem, também de gratidão, da assessoria de Erundina.
E agora, em 2025, nos reencontramos de novo.
Erundina recebeu o título de Cidadã Campinense na Câmara Municipal e o título de Doutora Honoris Causa pela UFCG.
Campina, oficialmente, assumiu que Erundina é nossa: por história, por afeto, por luta, por destino. Ainda deu tempo de entregar a ela, em mãos, a denúncia que fizemos contra o Deputado Hugo Motta, por uso indevido da Advocacia da Câmara para fins estritamente pessoais.
Enquanto eu assistia à solenidade, pensei em irmã Porto. Pensei na alegria que ela sentiria vendo a amiga celebrada pela cidade que ajudou a construir, direta ou indiretamente. Lá do céu, tenho certeza, ela abriu aquele sorriso maior que o mundo. E, se brincar, deve ter separado mais uns potes de doce de leite para me mandar em sonho, porque a eternidade é longa, e promessa é promessa.
Viva Erundina! Viva Irmã Porto! Viva Campina!