Anderson Pires é formado em Comunicação Social – Jornalismo pela UFPB, publicitário e cozinheiro.
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O marco da grilagem
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Foto: Joédson Alves – Agência Brasil

Apagar a história é prática comum no mundo. Não é uma prerrogativa de ditadores e déspotas. Mesmo no intitulado mundo democrático são muitos os exemplos, com atores políticos que vão da extrema-direita à extrema-esquerda. Afinal, a sociedade foi formada por erros e acertos, logo, até quando se coloca o nome de um ditador numa rua é uma forma de manter a história viva. Ninguém irá perguntar quem foi Ernesto Geisel, se não existirem referências a ele que dimensionem o grau da opressão que promoveu.

Por isso, sou contra processos de supostos resgates que promovem qualquer tipo de apagamento, mesmo quando se refere a homenagens impostas por ditadores. Quando se muda o nome de um bairro, também se apaga a história, seja ela feita de atos nobres ou barbaridades.

O mesmo acontece quando tentamos estabelecer marcos que apagam atrocidades, como foi o processo de colonização e invasão que formou o Brasil. Estou me referindo ao marco temporal para demarcar terras indígenas. O que o Congresso Nacional aprovou, além de usurpar territórios, produz algo nocivo que é o apagamento histórico, com o agravante de legalizar a ação criminosa dos grileiros do agronegócio.

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Vou usar uma situação cotidiana hipotética para ficar mais fácil de entender. Caso uma família que tenha tido sua casa tomada por milicianos no ano de 1987, que ali resolveram transformar numa mercearia para venda de produtos, não seria possível entrar com processos de reintegração de posse, já que a Constituição do Brasil foi promulgada em 1988. Com aprovação de um marco temporal, se estabelece que o direito a posse só existe para quem ocupava a casa ou entrou com processo de reintegração até a data da promulgação da Constituição. Para completar, a justificativa da tal lei seria para dar segurança jurídica à atividade produtiva, mesmo que ela tenha sido fruto de ato criminoso.

O marco temporal para demarcar terras indígenas aprovado pelo Congresso Nacional, mesmo considerado inconstitucional pelo Supremo Tribunal, funciona da mesma forma que o exemplo hipotético acima. Além disso, promove o apagamento histórico de maneira brutal e inocenta a ação criminosa do agronegócio, que foi formado pela invasão de terras, grilagem, desmatamento ilegal, crimes contra a biodiversidade, assoreamento de nascentes e rios, além da expulsão e assassinato de povos originários.

Isso é realidade no Brasil, antes, durante e depois da promulgação da Constituição de 1988. O Congresso Nacional atuou como agente em prol dos crimes praticados pelo agronegócio. Tenta mudar o curso da história, pois, seja por ação criminosa ou intervenção do estado, as terras que foram destinadas à agricultura e pecuária, originalmente, se destinaram a exploração comercial. Não estamos falando aqui do pequeno pedaço de terra que foi ocupado por anônimos para subsistência.

Não cabe também a falácia do papel social da terra. Apesar de estar previsto na Constituição que a destinação das terras deve atender a um papel social, a realidade é outra. O agronegócio é a mais brutal forma de capitalismo. Nega o direito a vida quando promove a degradação do meio ambiente, busca o lucro abusivo com base no que estabelece o mercado, representa um custo absurdo para o país por ter a produção financiada com juros subsidiados, explora o trabalhador ao extremo, alguns em situação análoga a escravidão e não cumpre função social alguma, pois, apesar do Brasil ter produção capaz de alimentar cerca de 1,3 bilhão de pessoas, temos milhões de brasileiros passando fome.

O Brasil ainda é um país agrícola. Em pleno século XXI, os valores da época da colonização ainda se sustentam. A defesa da propriedade, mesmo que obtida da forma criminosa que foi feita pelo agronegócio, é justificativa para tudo, até mesmo para promulgação de leis que apagam a história. Com isso, negam que indígenas foram exterminados e que suas terras foram tomadas à força por exploradores e criminosos. Para os deputados e senadores, tudo pode em prol dos interesses dos seus criminosos de estimação, seja quando roubam terras indígenas ou promovem golpes à democracia.

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