
Acordei na manhã de Natal e, enquanto me espreguiçava sentado à cabeceira da cama, levei um susto daqueles que fazem a alma pedir aposentadoria antecipada.
Esfreguei os olhos com força, piscando várias vezes, para confirmar se era real o que aparecia refletido no espelho. Era. Infelizmente, era.
Sentado ao meu lado havia outro eu: um pouco mais magro, visivelmente abatido e ainda mais barbudo, o que, convenhamos, já era um feito estatístico.
— E aí? Beleza? — disse ele, com intimidade suspeita. — Sou você, se tivesse pego o dinheiro do prêmio daquela feira de ciências, na 8ª série, e comprado uma guitarra em vez daquele videogame idiota.
Putz. O desgraçado era minha cara mesmo. Não tinha como negar. Só nunca imaginei que, em algum universo possível, eu fosse usar aquelas bandanas ridículas, tipo Axl Rose depois de três carnavais seguidos.
— Tá… e o que aconteceu comigo? Quer dizer… contigo? Com a gente? Sei lá como conjuga isso — perguntei.
— Ficamos ricos. Fiquei. Você ficou. Enfim… apesar do nome da banda de punk rock que lideramos: Bloodie Cookies. O que, aliás, acabou nos levando à falência por causa de uma disputa jurídico-empresarial com uns escrotos de uma marca de biscoitos recheados de morango — explicou, acendendo um cigarro no meu quarto, com o ar-condicionado ligado, como todo canalha coerente.
— Puta que pariu… que nome de merda! Cof! Cof! Cof!
— Concordo. Por isso troquei rápido pra Lagartos do Sótão, logo após a primeira notificação extrajudicial. Prevenção jurídica básica — disse um terceiro sujeito, surgindo do banheiro enquanto fechava a braguilha com a mesma falta de coordenação motora que sempre me acompanhou.
Era outro eu.
Esse usava terno, parecia mais bem-sucedido, apesar da palidez cadavérica e daqueles olhos fundos de quem já viu coisa demais…
— E aí? — perguntei. — Mantivemos a fama, o dinheiro, as mulheres?
— Por um tempo, sim. Dois, três anos. Turnê na Europa, Ásia, África… tocamos até na Casa Branca! Lideramos um concerto beneficente no Haiti! Foi lindo! — disse ele, emocionado. — Mas a agenda era insana, viagem pra todo lado, vida louca… morri num acidente aéreo aos 27 anos.
Pronto. Outro susto. Antes que eu processasse a informação, um quarto sósia apareceu do outro lado da cama:
— Calma, calma! Eu não entrei naquele avião. Tinha tido uma overdose de vodca com suco de kiwi e fiquei internado uma semana. Foi isso que nos salvou! A Paulinha — minha, nossa, sei lá — a oitava mulher, insistia nessas paradas meio tântricas… e esse drinque do inferno acabou sendo um milagre etílico! Rá! Rá! Rá!
Ele riu, satisfeito. Mas logo emendou, num tom amargo:
— Só que depois da recuperação, a Creusa — nossa nona mulher — deu um golpe na gente com o baixista, que era amante dela, e nos deixou na mais absoluta miséria.
— A Creusa?! — perguntei, indignado. — Aquela que namorava o Alvarinho no Ensino Médio?
Bum! Pá! Pei! Pou! Sca-ka-ta-puf!
Um pedaço do teto desabou bem no meio da cama. Dos escombros, levantou-se um quinto eu, coberto de pó de gesso, limpando a fuligem com dignidade possível:
— Eu sou vocês se tivessem usado o dinheiro do prêmio da feira de ciências pra comprar um paraquedas… em vez do videogame.
Cof! Cof! Cof!