Professora aposentada do DSS da UFPB, Autora de "Os fios (in)visíveis da produção capitalista" e "Informalidade e precarização do trabalho: as novas tramas da produção capitalista"
Professora aposentada do DSS da UFPB, Autora de "Os fios (in)visíveis da produção capitalista" e "Informalidade e precarização do trabalho: as novas tramas da produção capitalista"
A igualdade pela direita
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São Paulo, SP. 01 de julho de 2020 greve dos entregadores de aplicativos – Av paulista, – Foto: Roberto Parizotti/Fotos Publicas

A igualdade que a esquerda quer pela centralidade do trabalho está a ser feita, à direita, pela sua negação. Ou, para ser mais explícita, pela via do empreendedorismo, que é um modo sutil de obscurecer o trabalho. No capitalismo contemporâneo, o trabalhador, em geral, pode (Capital e Estado acha que todos devem) tornar-se empreendedor. É empreendedor o pequeno empresário, profissional liberal que conseguiu poupar e tornar-se um empregador, como também o é aquele vendedor de chiclete, sem escolaridade, que com o dinheiro arrecadado, na porta do colégio, hoje, compra a mercadoria que vai vender amanhã. 

A postos estão os bancos, para nutrir a vaidade do vendedor de chicletes com a conta que ele nunca teve e que lhe abre a possibilidade de dever e de pagar juros. Multas, se atrasar. Por mais insignificante que pareça ser o cliente, a indústria do chiclete também louva o empreendimento, desde que aumente a demanda pelo seu produto. Os cofres públicos, por sua vez, têm a sua fatia, à medida que a formalização do empreendimento implica impostos. Face a esse quadro, os mesmos capitalistas que querem a abolição do trabalho formal, se comprazem com a formalização dos pequenos negócios, uma vez que o trabalho é transfigurado em empresa e essa estratégia livra-os do constrangimentos de lidar com a classe trabalhadora.

Como se pode ver, o pomposo título de empreendedor não é concedido gratuitamente. O trabalhador obriga-se a criar o seu próprio emprego –  no caso do aludido vendedor,  apenas uma ocupação instável e mal paga – para aventurar-se a um cotidiano de incertezas, que tem custos e perdas. A maior delas, a ausência de proteção social, uma vez que a maioria não dispõe de recursos para pagar o INSS como autônomo. Coitado! Qual autonomia? Nem na circulação, nem na produção o empreendedor tem autonomia. Por mais que se tente mascarar a situação, justificando-a, principalmente, pela autonomia, por não ter um patrão a quem prestar contas, os empreendedores têm o mercado como patrão, o pior dos patrões.

O mercado, esse rigoroso patrão, é surdo a qualquer reivindicação do sujeito que trabalha por conta própria e a sua autoridade é manifesta de diferentes formas. Uma delas, diz respeito ao limite de espaço. Um empreendimento bem sucedido não sugere a sua imediata repetição. Ao contrário, o sucesso, muitas vezes, se deve ao fato de ser único. Mas, como o número de desempregados é muito grande, por mais que se apele à criatividade, as experiências tendem a ser repetidas. O mercado não perdoa a  repetição de uma mesma atividade num mesmo espaço econômico. A competição, tão bem vinda em termos de consumo, não altera em nada o valor das mercadorias que sejam demandadas pela atividade, porque essas terão sempre o seu valor real. A única mercadoria com a qual o mercado pode brincar com o seu valor é a força de trabalho. Note-se que nas crises os salários tendem a diminuir. As crises do capital viram crises do trabalho. No caso do empreendedor, o sujeito por ser um híbrido de patrão e empregado, só lhe resta rebaixar o custo da força de trabalho que, por acaso, é a sua. Como se pode ver, só é vantajoso ser patrão, quando o sujeito vive de explorar o trabalho alheio, nunca quando tem que apertar o próprio cinto. 

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A grande treta capitalista é fazer todos os trabalhadores acreditarem que são patrões, mesmo que uns sejam apenas de si mesmo. Ou, na melhor das hipóteses, tenham uns poucos empregados ou incluam os familiares a trabalharem sem remuneração. Se os trabalhadores não se derem conta do imbróglio em que estão sendo metidos, em breve alguém vai afirmar e demonstrar que é possível garantir a tão desejada igualdade no capitalismo, sem nenhuma revolução, apenas pelo discurso. Nesse mundo maravilhoso de iguais, todos – grandes empresários e empreendedores – supostamente se encontram na esfera de circulação, onde o ato de compra/venda não inclui força de trabalho. 

Como parte dessa enganação, o mundo da mercadoria faz desaparecer o seu momento predominante – o da produção. As relações estarão restritas à circulação e ao consumo. Ora, se as mercadorias continuam a existir e o capitalismo ainda não consegue o milagre de fazê-las cair do céu, obrigatoriamente terão que ser produzidas por alguém. Se essa produção é movida por mais trabalho morto (máquinas) que trabalho vivo, a função de produzir não é excluída de muitos trabalhadores, pelo simples fato de serem chamados de empreendedores, de trabalharem fora das fábricas ou de serem proprietários dos meios de trabalho. Estes, em muitos casos, sob a ilusão da autonomia, trabalham inteiramente desprotegidos, mas mediante determinações idênticas àquelas que teria se fosse um trabalhador assalariado por tempo. Tem razão o entregador Paulo Lima – Movimento de Entregadores Antifascistas –, conhecido Galo, quando afirma serem os entregadores força de trabalho. Sim, se o Estado não fosse “o comitê para os negócios da burguesia”, entregadores, motoristas de aplicativos e muitos trabalhos domiciliares implicariam relação de emprego, com todos os benefícios que, em tese, ainda constam dos direitos trabalhistas.

Mas a luta pela igualdade requer compreensão da desigualdade. Os trabalhadores precisam entender que o capitalismo é uma relação, que capital não existe sem trabalho e que os capitalistas não são os nossos provedores. Em defesa do capitalismo, muitos trabalhadores costumam alegar a necessidade de emprego. Ora, o emprego nunca foi uma doação. Ao contrário, o dinheiro do capitalista é valorizado por um trabalho que só é pago ao final de um período em que o mesmo foi adiantado. E o valor do salário nunca corresponde ao que foi produzido pelo trabalhador. Atualmente, o argumento do emprego perde força, porque a forma pela qual a contradição se move é o empreendedorismo, cujo discurso carrega a ilusão da igualdade. Como se por efeito de mágica, capitalistas e trabalhadores são agentes econômicos a se encontrarem no mercado para comprar e vender, sem que ninguém esteja a explorar ou a ser explorado na esfera da produção, exatamente onde a mais-valia é produzida. Claro, mais-valia só consta em dicionário de comunista. No mundo do empreendedorismo, somos todos iguais. Somos? Os empreendedores atestam essa igualdade? Talvez os bem sucedidos, sim. Mas estes fazem parte da exceção.

Alguém poderá dizer que sou repetitiva. É verdade. Como não disponho de meios suficientes para me contrapor ao discurso capitalista pró-empreendedorismo, penso que nunca é demais insistir no conhecimento dessa relação contraditória entre capital e trabalho. Relação que é geralmente obscurecida, esquecida ou ignorada. E, graças a esse movimento de negação, a sociedade atribui ao capitalismo uma perenidade que não lhe é inerente. O capitalismo não é o fim da história. É uma fase que tende a ser superada, se nós todos quisermos. Nessa direção, eu me arrisco a afirmar que a tarefa fundamental da esquerda, onde me incluo, é fazer os trabalhadores entenderem que o trabalho existe sem capital e que o capital não existe sem trabalho. A incorporação dessa assertiva, não só a sua intelectualização, apressaria a nossa caminhada em busca da igualdade social pela qual vale a pena lutar.

Paço d’Arcos, 6 de maio de 2021.

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