Jornalista, internacionalista e empreendedora.
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Advertência verbal
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Era noite de evento em um hotel de João Pessoa e eu, assessora de Comunicação de uma Autarquia Pública Federal, lá estava. Em cima de um salto, arrumada, maquiada e perfumada, como de costume. Carregando caixas, pendurando banners, arrastando mesas, também como de costume.

Um passo para trás. Visualizo o resultado da organização do ambiente. “Tá ótimo”, pensei. Me viro e me deparo com um colega de trabalho sentado próximo a mim, que parecia me filmar. Um fração de segundo. Achei que estava enganada. Mas a posição dele e do celular eram suspeitas. Ainda ingenuamente, perguntei: “Tá me filmando, é?”, com um sorriso constrangido, incrédula com o que se seguiria.

Nervoso, ele acusou-se, enquanto apertava os botões do celular apressadamente, mas nada acontecia. Nesses segundos, que hoje me parecem uma eternidade, eu vi uma miniatura do vídeo que, sim, ele gravava. Como eu suspeitara, o enquadramento evidenciava apenas uma parte do meu corpo: a bunda. Peço perdão, aliás, mas não usarei outro termo menos chulo. A ocasião pede o uso do verbete.

Então, lembro de ser tomada por um misto de espanto, raiva, revolta e um tanto de emoções que não conseguirei nominar, mas que me deram a força para conseguir tomar o celular da mão do sujeito. Eu não lembro de ser capaz de raciocinar naquele momento, tomada pela cegueira da raiva. Depois, me disseram que eu passei como um foguete, saindo do auditório em direção à única pessoa que poderia me ajudar: nosso chefe, o presidente.

Ofegante, em completo estado de nervos, ao mostrar o celular e relatar o que acabara de acontecer, ele elevou os ombros, como quem diz “o que eu posso fazer?”, e disse: “Abra um processo”.

Era óbvio que eu abriria um processo. Era óbvio que eu registraria o ocorrido na delegacia. O que eu esperava era indignação, respaldo, talvez um confrontamento imediato. Mais uma vez, que ingenuidade a minha.

Ainda nervosa, filmei o celular do sujeito com o meu aparelho, para me municiar de provas. Apaguei o vídeo do telefone dele. Mas aquela noite nunca se apagará. Muito menos o que viria em seguida.

O recorte dessa história poderia ser a falta de acolhimento e respaldo que mulheres vítimas de crimes sexuais enfrentam junto às autoridades policiais, considerando a dificuldade que encontrei para tão somente (porque deveria ser a parte mais simples) registrar o ocorrido na delegacia. Nas delegacias. Porque fui levada de um canto a outro, com orientações superficiais e nenhuma disposição em, de fato, ajudar.

O recorte dessa história poderia ser a batalha de narrativas e como a da mulher sempre perde força diante da narrativa do homem, considerando que, naquela mesma noite, o sujeito se aproximou pedindo perdão e alegando que não teve intenção (!). Aliás, fez-se de vítima nos meses seguintes. “O que essa moça tem contra mim?”, indagava após saber dar abertura do processo administrativo.

Por falar em vítima, o recorte dessa história poderia ser o fato da verdadeira vítima sempre se culpar, de alguma forma, pelo que lhe ocorreu; considerando que me arrependi de ter usado a saia lápis que vesti no dia, e que ela até hoje habita o meu guarda roupa, sem que eu tenha tido a coragem de usá-la novamente, desde então. Desejei nunca tê-la comprado, nunca tê-la escolhido. Desejei ter usado um hijab, pra ser sincera. Como sabemos, isso também não me pouparia dos ataques cruéis do machismo.

O recorte dessa história também poderia ser sobre a inércia, a morosidade e/ou a ineficácia do Poder Público, em geral, em relação aos crimes cometidos contra mulheres, considerando que quase dois anos se passaram desde o fato e foi necessário um esforço (não só meu, mas de mulheres corajosas que me ajudaram) no sentido de viabilizar o desfecho do processo administrativo. E não foi fácil.

Nesse sentido, o recorte dessa história poderia ser sobre o desgaste emocional que toda mulher vítima de um crime sexual enfrenta, considerando tudo que vivi, vi e ouvi ao longo desse tempo, ao desafiar o status quo da impunidade, do machismo, do corporativismo, do cinismo – de tantos “ismos”, de modo que nenhum conjunto de palavras jamais conseguiria definir como cheguei até aqui: esgotada emocionalmente.

O recorte dessa história poderia ser a ofensiva machista ao menor sinal de ameaça a si ou aos seus, considerando o “alerta” que eu e duas colegas de trabalho, que me apoiaram nesse momento, recebemos. “Fique muito à vontade. O que aconteceu é absurdo. Você está no seu direito. Mas lembre que há consequências”. E houve consequências. Para mim. Não para o sujeito.

E é esse o recorte da história: a impunidade com a qual, mais uma vez, um homem é brindado ao transpor as barreiras do respeito, da civilidade, da integridade, valendo-se de um pacto social que nos amordaça, nos viola, constrange, ataca e nos objetifica.

Recebo a correspondência, em dezembro de 2021, endereçada à ex-assessora de Comunicação do órgão:

“Aprova com 2 (dois) votos contrários o Relatório Final exarado pela Comissão de Sindicância e de Inquérito Aplicação de penalidade ADVERTÊNCIA VERBAL (…) ao servidor denunciado que figura nos autos e registro de acometimento nos assentamentos funcionais de servidor”.

Tanta prolixidade para dizer que um órgão colegiado decisório, composto por 38 pessoas (dessas, 9 mulheres), decidiu advertir o sujeito como se fora uma criança de 5 anos que, ao menor sinal de desobediência, recebe uma bronca da mãe. Os dois votos contrários seriam os avós, então, que não concordam com a repreensão e acham a criança deve fazer o que quiser.

Pois bem. Nenhum registro na sua ficha funcional. Nenhuma resultante concreta e palpável. Nada. Apenas um aval para que continue a violentar mulheres, no ambiente de trabalho e fora dele. O que sempre fez, inclusive, porém nunca foi sequer denunciado.

Um lembrete grande e doloroso de que não há provas em processos, nem dores grandes o suficiente quando impera o machismo. É ele quem nos tortura, faz-nos sangrar por dentro, tenta nos calar e nos faz pagar um alto preço. Custa a nossa paz, nos leva a abrir mão de sonhos, nos tira as cores e os sabores. Ele nunca te atinge, rasga e passa, como um tiro. Para mim, se assemelha mais a uma jiboia, matando a presa por constrição, quebrando tudo por dentro e apertando-a até a asfixia.

Por isso, a minha maior revolta será sempre pela advertência verbal e não pela atitude do sujeito, ainda que deplorável e asquerosa. O sistema complexo que o protege consegue ser muito pior que o próprio indivíduo – tarefa árdua.

Enquanto ele ri da sua punição – se é que podemos chamá-la assim, a minha pena é paga coletivamente, com uma infinidade de mulheres que, como eu, continuam lutando, debatendo-se, gastando todas as energias para desvencilhar-se dessa cobra, enquanto seus ossos se quebram e seus órgãos sufocam. É impossível que eu consiga vencê-la, mas, enquanto houver vida em mim, vou desgastá-la, de modo que ela perca as forças quando chegar a vez da minha filha.

Dói. Mas essa dor há de servir para algo.

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