Graduado em Letras e Direito e mestre em Organizações Aprendentes pela UFPB
Graduado em Letras e Direito e mestre em Organizações Aprendentes pela UFPB
Audição
Compartilhe:
(Foto: dippy_duck/Flickr)

Somos descobertos na maioria das vezes por encontros desesperados. A mistura com os outros nos liquidificando. Os ajuntamentos que nos deixam descobertos mesmo vestidos, fazendo-nos pelos sentidos um não sentido. Essa afirmativas que se negam quase ao mesmo tempo em que se afirmam, como se quisessem empatar, não se satisfazem com o empate, querem sempre o empate de zero a zero, querem zerar o jogo.

E procuro os sentidos desesperadamente como se o sentido fosse me salvar. Me olho, me toco, estalo a língua na saliva, cheiro meu braço e fico a me ouvir numa necessidade de ser escutado. E foi assim que comecei a falar à toda boca de noite, me gravando a mim mesmo, para depois soltar uma voz gravada em áudios que planavam os ares da minha cidade. Uma voz que era desejada por representar uma racionalidade sanitária. Que afirmasse a certeza. Voz que fez tanta gente imaginar um retrato de um rosto inexistente. Que fez mascarar um corpo, amputando seus sentidos, deixando-o em um sentido só: a audição.

A audiência da escuta trazia informações com um fundo melodioso quase sempre desrelacionados com o falado, com os fatos contados, com as evidências buscadas, ditas. Os desejos dos ouvintes eram mais de clarividência do que de evidência. Todos queriam a saída, a resposta, o gabarito, a cura. Mas o que se tinha em 2020, depois do carnaval, era um vírus, uma doença, uma pandemia. Covid-19. O medo. O aperreio. A morte na esquina: sem canivete, sem revólver, sem faca afiada, sem mortalha. Sem a necessidade do morro descer para o asfalto. Mas morte. Sufocante, sem oxigênio, afogando-se. Um morro engasgado.

À toda boquinha da noite, como uma conta de rosário cantada, como se o dia quisesse se alongar para uma maratona escura; um áudio noturno era escutado por muitos ouvidos desconhecidos que projetavam desenhos corpóreos desassemelhados com a pessoa que falava, e que perdia sua singularidade para uma variedade de sujeitos nunca vistos. Somente ouvidos.

Clique aqui para ler todos os textos de Adalberto Fulgêncio

Uma gestação de áudios noturnamente falando para ouvidos não sabidos. Uma quantidade de orelhas ansiosas por uma voz relaxante, como se a orelha fosse a concha de uma colher de ansiolítico. Um monte de gente ouvindo toda noite quase a mesma coisa. Não trazia nada de novo porque nada de novo tinha. Assim foram os dois primeiros meses da gravidez pandêmica. Áudios quase repetidos, como se fosse um novamente. Mas áudios satisfatórios. E um monte de gente escutando as vozes em áudios que se propagavam. Cada um ouvia de um jeito. Pessoas desconhecidas. Não vistas. Intocadas. A única materialização era a fala em áudio, gravada, passada. Vazada.

Tais ouvidos agiam como se desenterrassem da pandemia aquela voz que falava sem muito ter o que dizer. Toda noite, depois do dia. Toda noite. Encontros de ouvidos para pontos de pessoas tão distantes. Ouvidos querendo ser como olhares que piscam quando se encontram; como corpos que se eriçam feito malícia tocada a caminho do roçado. Como peles que se encontram no desejo do gozo. Ou como o interruptor do quarto que faz conexão para existir e desistir da luz. Um apaga e acende gerando confusão nas cabeças do todos os crentes. E de todos os humores também. Os primeiros dias da pandemia foram mais ou menos assim. Um percurso inicial de itinerários desajeitados onde prevaleceram mais murmúrios que vozes das racionalidades.

Numa pandemia, a morte aparece inteira, num corpo só, na sua indivisibilidade. Ela aparece como ela é! Ela aparece viva. Engalfinhando a gente. Engolfando-se na gente. O medo explode às avessas, provocando uma conturbação nos miolos, nos músculos e nas tripas. Tudo fica nublado, mareado. Os amores viram amoras passadas. As amizades se esvaem em retóricas de púlpitos vazios cheios de padres e pastores que negam os céus e de cientistas que negam a terra. Crentes, descrentes e não crentes correm feito doidos para não escapulir da vida. E os doidos começam a rir dos pandêmicos numa risada de quem entende de vida.

E num gesto indefinido, me resta um riso meio aberto, meio fechado; que busca a alegria do áudio ouvido para passar a noite e caminhar com passos dos meus pés o enfrentamento da pandemia do dia seguinte, para fins de produzir outro áudio que vazado vira outra noite para agir no outro dia. Uma roda de conversa em espiral.

Compartilhe:
Palavras-chave
covid-19pandemia