Marina Magalhães é jornalista, professora e pesquisadora. Doutora em Ciências da Comunicação (Universidade Nova de Lisboa), mestre em Comunicação e Culturas Midiáticas e bacharel em Comunicação Social (Universidade Federal da Paraíba). Instagram: @marinamagalhaes_m
Marina Magalhães é jornalista, professora e pesquisadora. Doutora em Ciências da Comunicação (Universidade Nova de Lisboa), mestre em Comunicação e Culturas Midiáticas e bacharel em Comunicação Social (Universidade Federal da Paraíba). Instagram: @marinamagalhaes_m
Cultura do cancelamento: com quantos (dis)likes se faz uma revolução?
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Houve um tempo em que ser politicamente incorreto era quase um sinônimo de rebeldia. Se tudo o que se gosta “é imoral, é ilegal ou engorda”, como diz a canção de Roberto Carlos, por que não se permitir um pecado capital de vez em quando? Pequenos deslizes cotidianos antissistemas? Um humor mais ácido, uma atitude inesperada, um rompante contra a ordem estabelecida?

Porém, como a linguagem é quase uma entidade orgânica, e como tudo que tem vida se transforma ao sabor do vento, do tempo e do contexto, o que se entendia por politicamente incorreto também tomou novas formas. Hoje, o conceito está associado a ações e visões de mundo que ferem a liberdade de outrem, a diversidade de gênero, de raça, de classe, resvalando em todo tipo de preconceito. Muitas vezes, crimes como o de racismo, homofobia ou xenofobia travestem-se de “brincadeiras” politicamente incorretas, misturando-se a ações e declarações impensadas que passam ao lado da moral e dos bons costumes.

Só para citar alguns casos, o politicamente incorreto está no comportamento da médica que em um dos momentos mais críticos da pandemia de coronavírus brinca que intubou mais um paciente (e que no terceiro “pede música no Fantástico”). Na postura da influenciadora digital que celebra a aglomeração em meio ao crescimento da curva pandêmica (e, infelizmente, morre de covid-19 tempos depois). Na atitude da rapper sulista, representante das mulheres negras em um cenário artístico predominantemente masculino, que debocha do sotaque de uma outra mulher, nordestina, ofendendo uma aldeia inteira.

Ou, ainda, é o presidente da República de um país em colapso que durante uma pandemia luta contra a vacina e o distanciamento social, ignora a dor das vítimas, propaga fake news e promove aglomerações. Bem, nesse último caso, travestido de politicamente incorreto, esconde-se um projeto de genocídio dos mais vulneráveis. Logo, um outro patamar de gravidade, que demanda ações mais enérgicas de um país acovardado.

Com a profusão de vozes historicamente silenciadas, que hoje ocupam de forma militante e vigilante as redes sociais digitais, o politicamente incorreto vem encontrando forças de resistência. E uma das armas contra essa forma de estar no mundo deu origem a uma expressão famosa: a cultura do cancelamento, que se manifesta por meio de dislikes (“descurtidas”) e unfollows (“deixar de seguir”) em massa de páginas e perfis nas redes sociais. Isto é, marcas, empresas, artistas, políticos e celebridades em geral que derrapam em posturas ou discursos, contrariando as expectativas dos seus seguidores, são excluídos, ignorados, bloqueados do espaço digital. O episódio “Natal branco”, da série Black Mirror – produção da Netflix sobre um futuro distópico –, seria mera coincidência?

Por um lado, no mesmo espaço em que uma parcela da população se orgulha ao ferir princípios éticos, existe uma força contrária que se dedica a patrulhar eventuais deslizes. De fato, existe uma função pedagógica na cultura do cancelamento: qualquer um pode ser cancelado, até mesmo os olimpianos. Graças às redes sociais digitais, gente que nunca foi tão cobrada pelo grande público – artista, intelectual, cientista, político, jogador de futebol etc. – agora precisa medir palavras e ações. Uma vez cancelada, tal pessoa e todos os seus seguidores são impulsionados a refletir sobre a questão. Se perdemos em espontaneidade, ganhamos em debate acerca da responsabilidade social desses agentes.

Por outro lado, será que a cultura do cancelamento, em sua dinâmica, não tem um quê de politicamente incorreta? Até que ponto cancelar pessoas, de forma autoritária, ajuda uma sociedade a evoluir? Quem vigia os canceladores? A questão é mais complexa que uma visão maniqueísta do bem contra o mal.

Prova de que nem sempre o “Tribunal do Feicebuqui” tem razão é termos Tom Zé, patrimônio musical do Brasil, como um dos primeiros cancelados dessa cultura, por ter gravado uma propaganda da Coca-Cola, ainda em 2013. “Que é que custava morrer de fome só pra fazer música?”, respondeu em verso aos juízes que lhe chamaram de artista vendido, entre outros xingamentos.

Isso revela que as águas dos mares digitais nem sempre são límpidas: na tentativa de fazer revolução por meio de “descurtidas” e “desseguidas”, existe uma série de elementos – ideologias, discursos de ódio, efeito manada, algoritmos, robôs, etc. – que influenciam negativamente essa maré. Portanto, manter um olho no cancelado e outro no cancelador, sem perder de vista os não humanos que os (des)conectam, pode ajudar a navegar melhor na web da vida nesses tempos líquidos, em que a quantidade de curtidas e de seguidores tanto tem a dizer sobre uma reputação.

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