Médica pela UFCG. Medicina Baseada em Evidência. Atendimento Humanizado. Defensora do SUS. Feminista. Instagram: @priscilawerton.
Médica pela UFCG. Medicina Baseada em Evidência. Atendimento Humanizado. Defensora do SUS. Feminista. Instagram: @priscilawerton.
É a minha opinião
Compartilhe:
(Foto: Autorretrato)

Última e estranhamente um assunto tem se tornado popular nas redes sociais: o (des)respeito. Disfarçados de “liberdade de expressão”, palavras e discursos violentos têm sido relativizados. 

Teve um que falou que a Alemanha errou ao criminalizar o Nazismo. Teve outro que acha que o Brasil deveria ter um partido nazista. Teve gente chamando em programa de rede nacional travesti de traveco e de “ele”, teve homem que não paga pensão do filho sendo chamado de cara legal, esposo que traiu a companheira 16 vezes sendo vitimado por ter sido traído por uma colega em um jogo fictício (que nem configura traição na vida real). E você pode achar que essas coisas não estão relacionadas, mas elas são variantes de um mesmo vírus letal: a falta de empatia. A falta de empatia pela vida e pelos problemas do outro, que são vistos como “mimimi” quando são dores que não doem na gente. 

Será que eu tenho o direito de não concordar que alguém seja viado? Será que eu tenho o direito de não gostar de negros? Será que as opiniões que eu cultivo na minha cabeça são direitos meus? A resposta é não. Suas opiniões nem sempre são direitos seus. 

Vamos aos esclarecimentos:

“Não posso mais achar ninguém legal só porque não pagou a pensão do filho?” Não disse isso, mas vamos pensar, se você fosse a mãe dessa criança, você ia conseguir achar esse cara legal mesmo que ele fosse o mais legalzão do universo sabendo que ele não cumpre a obrigação básica de pagar a pensão do filho? Se você continuar achando-o legal mesmo assim, então ok, caso não, vamos repensar. 

“Ah, mas aí eu vou ter que ficar tomando as dores dos outros? Eu não tenho nada a ver com o fato de ocara ter traído a esposa sei lá quantas vezes, se ela o perdoou, o que eu tenho a ver com isso? Não é problema meu, lá dentro do jogo o cara é super coerente e legal, apoio ele.”

Essa é uma fala que parece justa, mas é problemática. Primeiro porque você está claramente dizendo que porque um problema não é seu você não vai se importar. Segundo porque essa fala até faz sentido, só que os desdobramentos dela não são legais. Como esse cara foi facilmente perdoado pelos problemas conjugais dele na vida real, e que não são da conta de mais ninguém, esse discurso virou um ataque a uma mulher dentro do jogo, a mulher que o traiu e virou a vilã. Por que quando ele traiu isso não é problema seu, mas quando ele foi traído você tomou partido dele para colocar uma mulher como vilã? É mais fácil perdoar um homem branco, bonito e padrão, não é mesmo?

Vamos agora ao caso mais problemático desse jogo:o da Linna. Sim, somente ela terá seu nome mencionado aqui porque ela é minha preferida e o texto é meu (isso é liberdade de expressão, discurso de ódio não). A Linna é uma mulher. Não importa se tem escrito na testa dela, se ela tem ou não uma vagina. Ela é uma mulher e ponto final.     

Clique aqui para ler todos os textos de Priscila Werton  

Resgatando e entendendo alguns conceitos: 

IDENTIDADE DE GÊNERO: Forma como você se relaciona com você, como você se vê, como se identifica. 

SEXO BIOLÓGICO: resultado do material genético designado a uma pessoa durante sua formação ainda intraútero, esse sexo é responsável pelo fenótipo (aparência) masculina ou feminina pela estimulação de receptores, mas isso não é imutável. 

ORIENTAÇÃO SEXUAL: Forma com que você se relaciona com o outro, o que te atrai. 

BINÁRIO: Aquele que se identifica com um dos seguintes: ou homem ou mulher.

NÃO BINÁRIO: Não se identifica nem como homem nem como mulher pois acha que pertence a um terceiro gênero; quem se identifica como homem e mulher ao mesmo tempo; ou sem gênero. 

GÊNERO: CONVENÇÃO SOCIAL do que é masculino e feminino. 

  • Sendo assim, a identidade pode ser (resumidamente): 

– CIS: pessoa que possui o sexo biológico condizente com gênero que se identifica. 

– TRANS: pessoa que possui o sexo biológico que não corresponde ao gênero que se identifica. 

Lembrando que NINGUÉM É OBRIGADO A SE DEFINIR. 

  • A orientação pode ser: 

– Heterossexual: se sente atraído por pessoas do gênero oposto; 

– Homossexual: se sente atraído por pessoas do mesmo gênero (obs: não devemos usar o termo homossexualismo, pois o sufixo ismo remete a patologia, e homossexualidade não é doença) 

– Bi: se sente atraído tanto por pessoas do mesmo gênero quanto do gênero oposto (obs: bi não é uma pessoa indecisa) 

– Pan: se sente atraído por pessoas, não exatamente por um fenótipo de gênero, se relaciona com pessoas agênero, trans… (Uma infinidade de opções) 

As combinações entre identidade e orientação são infinitas. O que é ser homem ou mulher? Ter vagina ou pênis define quem você é? NÃO! Mulheres podem ter vagina ou pênis; homens podem ter vagina ou pênis; homens podem menstruar! O órgão genital não te define! Uma mulher CIS pode não ter útero, ovário, seios e até mesmo vagina, e nem por isso deixa de ser mulher. Um homem CIS pode não ter pênis ou testículos, mesmo assim ainda é homem. Por que é tão difícil extrapolar esses conceitos para a comunidade trans? 

Você é o que você se identifica, independente do seu órgão genital. Nem todas as pessoas trans passam pela hormonização ou fazem cirurgias de redesignação de genitália, mesmo assim ainda são trans. Alguém é trans a partir do momento que se identifica como tal. Uma mulher trans pode ou não ter vagina, ainda assim é mulher. Se duas mulheres se relacionam e uma delas é trans e tem um pênis, ainda assim, elas são lésbicas. 

Esse assunto todo parece muito complicado, mas aí vem uma questão, qual o problema então de pedir para as pessoas da comunidade LGBTQIA+ explicarem essas coisas? Por que é errado perguntar a uma pessoa trans o que é travesti, por exemplo? 

Porque não é obrigação dessas pessoas te ensinar. Você teve a vida toda para aprender isso, a internet está aí para você se informar, se você não procurou estudar isso, provavelmente é porque respeitar essas pessoas não é uma coisa que você considera importante. Pedir para elas te ensinarem não é demonstração de empatia, pelo contrário, é demonstração de desinteresse e burrice. 

E afinal, qual a diferença entre mulher trans, traveco e travesti? 

– Traveco é um termo pejorativo usado por pessoas burras. 

– Travesti já foi um termo pejorativo, hoje é usado por pessoas que possuem esse lugar de fala e se apropriaram de um termo pejorativo para modificar a forma como esse termo é usado e transformá-lo em manifestação de orgulho de ser quem são. 

Fenotipicamente, uma mulher trans e uma travesti não possuem diferença. Ambas são pessoas que nasceram com um sexo biológico masculino e não se identificam com o gênero masculino, portanto são mulheres. É uma questão de identificação, não tem relação com o uso de hormônios ou cirurgias genitais. Só quem pode dizer se é uma mulher trans ou uma travesti é a pessoa. Eu não posso dizer, nem você. E como faz então para saber se alguém é trans ou travesti? Não faz. A não ser que a pessoa se identifique ou que você tenha muita intimidade para perguntar, não é uma coisa que vai mudar em nada a sua vida, não cabe a você perguntar, é respeitar e pronto, você só precisa saber que ambas são identidades femininas e que, por isso, devem ser tratadas como ela/dela. Gentileza sempre. 

Então vamos estudar. Seguem algumas indicações de pessoas maravilhosas na internet que ensinam tudo sobre esse assunto, mesmo não sendo suas obrigações: 

@mandycandy

@luccanajar

@transdiario

@thiessita

@bru__andrade 

@jonasmariaa

@linndaquebrada

@transdiario 

@luccanajar 

@alinadurso 

@hellobielo

@linikeroficial

E uma indicação de filme maravilhoso com Darín, imperdível, que passeia por discussões de gênero de forma brilhante, disponível na Netflix: XXY

Então uma pessoa não pode não gostar de viado? Na casa dela, dentro da cabeça dela, no íntimo, em silêncio, até pode. Mas no momento que ela exterioriza isso seja em atitudes ou palavras, aí não pode. Porque se uma pessoa se acha no direito de dizer que não gosta de viados (e vou usar esse termo errado e de forma genérica aqui porque quero atingir exatamente quem pensa que falar assim é legal, mas quando falo viado estou me referindo a qualquer grupo de pessoas que sofra preconceito) então ela está abrindo portas para que outra pessoa também diga, e aí mais outra vai dizer e mais outra e mais outra, como em um telefone sem fio, a mensagem se espalha, e a gente sabe que a mensagem final nunca é exatamente igual a mensagem inicial. Então, quando uma pessoa diz que não gosta de viado e que isso é o direito dela de não gostar, a mensagem final desse telefone sem fio pode se tornar: “eu não gosto de viado, logo vou dar uma surra nele”. Isso não é exagero, a história se desenrola exatamente assim.

Começa com uma frase aparentemente inofensiva, que vai tomando proporções incontroláveis. Então não, você não tem o direito de dizer que não gosta de viados. Você pode até não gostar, mas não pode exteriorizar isso nem em palavras nem em atitudes, porque o seu direito de não gostar de alguém não pode ser maior do que o de uma pessoa de existir. “O seu direito acaba onde o do outro começa” vocês não tiveram essa aula no maternal? Eu tive e lembro dela até hoje. Não vou nem entrar na seara do “não concordo” ou “não aceito” os viados porque quem tem que aceitar é o outro viado que está lá com o viado inicial, não é você. 

Sobre as criaturas defendendo o nazismo. Eu nem acredito que ainda hoje seja necessário falar como defender nazismo é uma coisa absurda. Se você defende o nazismo você está dando um atestado de burrice para toda a sociedade, mostrando o quanto você não prestou atenção nas aulas de história e como você não gosta de estudar. 

Vamos dar uma relembrada que o nazismo foi um sistema de valorização e de supremacia branca que perseguia, matava e torturava judeus, negros, ciganos, gays, comunistas e outros. Não era só uma ideologia contra essas pessoas porque apenas não gostavam delas (embora vocês já tenham entendido que tudo começa com essa ideia de que tudo bem não gostar de alguém, afinal é o seu direito), essas pessoas foram mortas e torturadas. Não se trata de liberdade de expressão, é a morte. Não tem o que discutir, é inaceitável discutir se o nazismo é errado ou não. É ERRADO E É CRIME E PONTO FINAL. Quem não se lembra do que foi o nazismo volte ao ensino médio para estudar, porque aqueles que não lembram do passado estão condenados a repeti-lo. Ser banido da internet por defender nazismo não é perseguição política, se suas ideias colocam em risco a vida de outras pessoas, você não tem o direito de dizê-las. 

No final das contas o bom e velho exercício de se colocar no lugar do outro e “e se fosse comigo, com a minha mãe, com a minha filha?” precisa ser urgentemente substituído por: não preciso sentir a dor do outro em mim para apoiá-lo e ajudá-lo. Não importa se eu não entendo essa dor, a dor do outro é válida, não precisa ser em mim ou na minha mãe para que eu respeite. Não preciso entender a dor do outro, só preciso considerá-la e respeitá-la. Eu achava que isso era um exercício que médicos deveriam fazer, mas não. Empatia é para todos, sentir a dor do outro no outro é uma habilidade que todos precisamos desenvolver e praticar.

Algumas coisas que precisam ser esclarecidas sobre esse texto: não estou colocando no mesmo patamar de “erro” não pagar pensão, trair a esposa, ser transfóbico e nazista. Esses comportamentos foram colocados no mesmo ambiente apenas para mostrar que o respeito e a empatia passeiam por diferentes níveis de problemas que podem começar pequenos e tomar proporções horríveis, por isso devem ser praticados mesmo em situações “inofensivas” como ao apoiar um homem que traiu a esposa. Nazismo, racismo e transfobia não são apenas errados, são crimes e precisam de punição adequada.

Compartilhe: