Graduado em Letras e Direito e mestre em Organizações Aprendentes pela UFPB
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É preciso respeitar a história do Programa Nacional de Imunização do SUS
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Foto: Gustavo Vara – Fotos Públicas

O Sistema Único de Saúde – SUS é o maior sistema público de saúde do mundo em um país com mais de cem milhões de habitantes. Ou seja, nenhum país com mais de cem milhões de habitantes tem um sistema público de saúde da envergadura do SUS. Todavia, seu financiamento está muito aquém do necessário para cobrir todas as necessidades de saúde de sua população e de seu território. Mesmo assim, o SUS consegue proezas inimagináveis como o Programa Nacional de Transplantes de Órgãos e como o Programa Nacional de Imunização – PNI, para ficarmos apenas em duas referências de excelência. Trataremos aqui apenas deste último, motivado pelo momento em que estamos passando em vida.

O PNI remonta aos idos de 1970, constituiu-se em uma engrenagem com coordenação nacional para formulação, elaboração e aquisição de insumos e imunobiológicos para todo o sistema de saúde brasileiro, possuindo um leque de 18 vacinas que estão disponíveis no calendário nacional de imunização; tal engrenagem é composta ainda por centros distribuidores desses imunobiológicos nas 26 unidades federadas estaduais mais o Distrito Federal, se completando em espiral nas mais de 40 mil salas de vacina instaladas nos mais de 5.500 municípios pelo país afora, com infraestrutura e  pessoal qualificado para executar o maior programa de imunização do planeta. Entretanto, se faz necessário que os municípios, como unidades federativas executoras, desenvolvam muito a sua capacidade de adaptação para enfrentar as realidades e as idiossincrasias de cada território, especialmente em momentos de pandemia agravada por uma confusão de comandos, inexistência de tratamento específico para a doença, baixa adesão ao isolamento social e escassez de vacinas. E, somado a isso tudo, estamos ainda entrecortados pelos tempos de supremacia da informação em abundância desmedida e pelas falsas informações, as conhecidas fake news, que aumentam o desafio do gestor público.

Nesse sentido, precisamos fazer um esforço para errar o quanto menos possível. E algumas iniciativas postas para o enfrentamento da Covid-19 estão passando pelo desconhecimento total do SUS e de seu programa de imunização. Vejamos duas dessas iniciativas: uma, no âmbito da aquisição de vacinas; e outra, no âmbito da execução de sua aplicação. 

A primeira trata da possibilidade de aquisição de vacinas por empresas privadas para a prevenção da Covid-19 para seus empregados e diretores. Tal possibilidade destoa daquela usada pela grande maioria dos países, nos quais a vacinação pública e em massa é a que vem sendo executada, e com sinais de êxito (diminuição da contaminação e do número de mortes). Três países apenas, além do Brasil, estão na busca de compra dessa vacina por meio de empresas, dando marcas ao mercado brasileiro de práticas exóticas em seus negócios. Essa anomalia do nosso mercado é tão gritante que a indústria farmacológica, detentora de tecnologia de ponta em química fina, já adiantou que não venderá esses produtos para o setor privado, pois não querem agregar às suas marcas uma evidência de egoísmo, por isso que todas elas estão dando preferência para as vendas governamentais. Aqui, percebe-se leve diferença da elite nacional da internacional.

Outra faceta desse eventual desse tipo de aquisição é tornar ainda mais confuso o enfrentamento da pandemia em nosso país, além de alargar o fosso da desigualdade social e econômica que mancha o mapa brasileiro. Diante da notória escassez de vacinas pelo mundo, a estratégia de todos os governos é a proteção dos mais vulneráveis sob o aspecto sanitário, e não estimular uma corrida para a vacina entre pobres e ricos, muito menos esvaziar a generosidade dos valores que regem o SUS, especialmente aqueles que dizem respeito à sua universalidade e à sua equidade. Essa ação evidencia o estímulo ao setor privado para competir com a capacidade de aquisição do SUS, negando seu caráter complementar e de cooperação.

Outro não sentido dessa iniciativa diz respeito ao fato de que a vacinação de pequenos segmentos de parte da população não se sustenta sob o ponto de vista da epidemiologia, pois não contribui para a geração da imunidade de rebanho, que é o fim de uma campanha de vacinação em momentos de pandemia. É regra da imunologia que a imunidade de rebanho somente se alcança quando aproximadamente 70% da população se encontra imunizada.

Já no tocante à execução da aplicação das vacinas, alguns municípios estão incorrendo no erro estratégico de buscar a aceleração da vacinação desconsiderando que as vacinas disponíveis para a prevenção da Covid-19 são dispensadas em duas doses, exigindo uma estratégia consolidada pelo PNI ao longo de sua existência. Nesses casos, a recomendação básica é dividir o número de doses por dois, um cálculo aritmético acumulado em nossa capacidade cognitiva na primeira fase do ensino fundamental, acrescido da desnecessidade de confundir publicidade com propaganda. 

Assim, a aquisição de vacinas por parte de empresas privadas coloca o país na contramão do mundo no combate à pandemia da Covid-19 e a aceleração da aplicação das vacinas, desconsiderando o conceito básico de esquema vacinal por duas doses, demonstra o desconhecimento do manejo dos processos de trabalho inerentes à gestão pública e ao Sistema único de Saúde – SUS.

A gestão pública requer reconhecimento daquilo que foi acumulado ao longo de sua história, especialmente sob o aspecto de sua cultura e sua complexidade organizacional. A sucessão de governos não espelha massas falidas com inventários a serem administrados, e muito menos a meta é o lucro. Quem muito está acostumado a ter o lucro como fim único, ao fazer o gerenciamento da coisa pública, corre o risco de sofrer de abstinência, que pode gerar tédio propulsor de ausência de sentido da vida, porque não sabe se colocar no lugar do outro. O outro passa a ser visto como um sujeito a ser monetizado ou como um objeto a ser descartado depois de consumido, desconsiderando as relações entre sujeito, objeto e ambiente. Gerir o SUS significa garantir a efetivação do direito à saúde, por meio de um sistema organizacional que exige que cada gestor aceite a sua complexidade, com muita noção daquilo que plúrimo, múltiplo e comunitário.

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