Jornalista e doutoranda em Informação e Comunicação em Plataformas Digitais pela Universidade do Porto (PT). Autora do livro Flores nos Canteiros (A União, 2018). Interesse em temas sobre feminismo, viagens, comunicação e redes sociais. flavia.lopes.sn[a]gmail.com
Jornalista e doutoranda em Informação e Comunicação em Plataformas Digitais pela Universidade do Porto (PT). Autora do livro Flores nos Canteiros (A União, 2018). Interesse em temas sobre feminismo, viagens, comunicação e redes sociais. flavia.lopes.sn[a]gmail.com
Eu falo brasileiro
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(Foto: Raquel Camargo/Flickr)

Até aos 29 anos de idade eu achava que falava português. Mas, quando cheguei em Portugal, descobri que eu falo brasileiro. Na minha cabeça deu um nó. Precisei sair do meu país para saber que o nome da minha língua materna era outra. É que a gente só se dá conta de que é um corpo colonizado quando sai da colônia. Na colônia a gente lida com os regionalismos, os preconceitos que correm dentro das fronteiras das nossas terras tupiniquins colossais. Na colônia a gente lida com outros colonizados. Fora dela, com colonizadores.

Esse preconceito linguístico é forte aqui em Portugal. Assim como deve acontecer entre outros países colonizados, como entre o espanhol da América Latina e o espanhol da Espanha; o inglês britânico e o inglês americano; o francês de um parisiense e o francês de alguém da República do Congo, por exemplo.

Mas, só posso falar da minha experiência. E a minha experiência aqui em Portugal vai para além de aceitar me chamarem de rapariga com naturalidade, ou pedir durex no ambiente de trabalho quando na verdade essa palavra significa camisinha, ou comer grelos (parte das flores das couves e dos nabos), punhetas de bacalhau, farturas e porras (churros). Até aí, as situações eram só cômicas e, por vezes, constrangedoras.

Mas um dia, o que me chocou foram algumas matérias televisivas e em jornais on-line “denunciando” crianças portuguesas que estão falando como brasileiros.

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Uma dessas matérias diz: “Dizem grama em vez de relva, autocarro é ônibus, rebuçado é bala, riscas são listras e leite está na geladeira em vez de no frigorífico. Os educadores notam-no sobretudo depois do confinamento – à conta de muita horas de exposição a conteúdos feitos por youtubers brasileiros. As opiniões de pais, professores e especialistas dividem-se entre a preocupação e os que relativizam, por considerarem tratar-se de uma fase, como aconteceu com as novelas.”  (Leia a matéria completa aqui ″Há crianças portuguesas que só falam ‘brasileiro’″ (dn.pt))

Continuei lendo a matéria, e (pasmem!), tem até criança que foi fazer terapia da fala! Uma das entrevistadas diz que está tratando do filho. Como se falar português do Brasil fosse alguma doença ou vício. “O que tentamos fazer agora é brincar mais com ele, bloqueamos alguns conteúdos, deixamos apenas a Netflix e tudo o que é em português de Portugal”, diz a mãe de um dos garotos, na matéria.

Que as escolas ensinam o português da norma culta, o português originário, o verdadeiro, o real, e perfeito, disso não temos dúvida! Mas acho que estão esquecendo de ensinar bem a história. Esqueceram-se que as variações linguísticas são consequências naturais de alguns anos atrás referentes aos períodos de colonização? Esqueceram-se dos esforços dos portugueses que chegaram às terras brasileiras para catequizar e ensinar (de forma violenta, diga-se de passagem) o português aos povos indígenas? Esqueceram-se dos tráficos de mão de obra escrava e de como os explorados tiveram que aprender a língua dos seus senhores de engenho? Esqueceram-se também que colonizaram outros países africanos e trouxeram muito do seu povo para o Brasil para trabalharem e com isso aumentaram muito mais as variações linguísticas que se sucederiam disso?

Pois bem, para cada ação, há uma reação. Nem que seja mais de 500 anos depois. A colonização agora é outra. É reversa. É cultural. E quando a cultura se espalha é difícil cortar o mal pela raíz. Pois a raíz é o próprio Portugal.

Por isso eu aceito essa nova denominação linguística. E digo: Eu falo brasileiro.

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Palavras-chave
língua portuguesa