Anderson Pires é formado em Comunicação Social – Jornalismo pela UFPB, publicitário e cozinheiro.
Anderson Pires é formado em Comunicação Social – Jornalismo pela UFPB, publicitário e cozinheiro.
Legalize já!
Compartilhe:
São Paulo (SP), 17/06/2023 – 15ª edição da Marcha da Maconha São Paulo na Avenida Paulista – Foto Paulo Pinto/Agência Brasil

O debate sobre a liberação das drogas está em alta. O Supremo discute a descriminalização do porte e do consumo da maconha. O tema gera polêmicas e achismos os mais diversos, quase todos com base na moral de quem se propõe a opinar. Nessa hora, aparece uma série de especialistas da própria opinião e as teses mais diversas são levantadas. 

Antes de levantar considerações e exercer meu papel de especialista em “tudologia”, deixo claro que sou favorável à descriminalização das drogas –  não só da maconha – , bem como também defendo a legalização da venda, por acreditar que a invisibilidade imposta é mais nociva do que o uso explícito. Consideremos que, apesar da proibição, o consumo existe e o mercado consumidor é gigantesco. Em sendo assim, parece-me não ter sentido que  a atividade comercial seja clandestina.

Certamente, irão indagar: mas liberar todas as drogas? Sim. Por mais absurdo que pareça, a liberação das drogas já tem uma aprovação tácita, na medida em que milhões consomem, mas é tratado no campo da marginalidade. Independentemente de ser uma atividade ilícita, são consumidas da maconha às drogas sintéticas, no Brasil e no mundo. Digo mais, grande parte das drogas consumidas no mundo são encontradas nas farmácias em caixinhas com tarjas pretas ou até mesmo na forma de um simples xarope infantil, que se consumido em maior quantidade gera alucinações.

Mas estamos falando da parte do mercado que atua clandestinamente, sem o aval estatal, muito menos a condescendência de médicos e a chancela de laboratórios. Contudo, sabemos que a depender do lobby e da abrangência do consumo, a liberação será total, com a venda generalizada, de quiosques a supermercados, como é o caso do álcool e do tabaco.

Alguém dirá que, mesmo com a legalização, existe tráfico de cigarros e bebidas. É verdade, mas isso ocorre porque grande parte do preço desses produtos corresponde aos impostos e, assim como em qualquer outra atividade, haverá sonegadores e falsificadores que tentarão ganhar a parcela que deveria ser do Estado. Logo, o criminoso não decorre da impossibilidade de trabalhar num mercado legal e regulado, mas do próprio caráter de cada sujeito.

Porém, essa deixará de ser a única opção. Os produtores de cerveja e cigarro, assim como os de camisetas ou celulares estão sujeitos aos mesmos males do mercado, portanto, sempre existirão aqueles que tentarão tirar proveito, mesmo que num ramo de atividade legalizada. Certa vez, assisti um vídeo de uma entrevista com o presidente da marca de whisky John Walker, perguntaram a ele se ele tinha ciência da falsificação do seu produto. Ele respondeu: vendem mais do meu whisky do que eu fabrico. 

A resposta deixa claro que a lógica utilizada para criminalizar a produção de drogas não se sustenta. Supor que a legalização não extinguiria o tráfico e que este provocaria um aumento da violência em decorrência da disputa de mercado é um argumento questionável, porque nas atividades comerciais, em quase todas, há tráfico, contrabando, falsificação e outros tipos de crimes relacionados. Até trabalhadores são traficados.

Porém, também, é óbvio que nas atividades regulamentadas pelo Estado o controle é muito maior que nas exercidas estritamente de forma criminosa. Mas estamos falando de drogas, teremos discursos inflamados afirmando que isso seria um incentivo ao consumo.

Pelo contrário, estaria aí a oportunidade para se estabelecer uma política antidrogas a partir do reconhecimento da existência da oferta e da procura do produto. Ao contrário do que verificamos hoje, em que temos um problema de proporções gigantescas, com milhões de usuários de drogas, mas como o mercado não é formal o problema só é tratado na reabilitação, quando os estragos não podem mais ser escondidos. Ou será que a maioria dos usuários de drogas está na cracolândia?

Clique aqui e leia todos os textos de Anderson Pires

Um bom exemplo de políticas antidrogas é verificado inversamente no tabaco e no álcool. Enquanto se verificou uma redução no consumo e vício do tabaco, pela forma incisiva de desestimulo à compra de cigarros, não se obtiveram os mesmos resultados em relação ao consumo de cervejas, face ao volume de propagandas da bebida, que inundam os meios de comunicação. Determinadas marcas chegam ao exagero de atribuir ao seu consumo uma forma de inclusão social.

Por outro lado, temos, no Brasil, uma epidemia de vaporizadores, que são consumidos clandestinamente, sem que exista um só cartaz alertando para os riscos à saúde. Afinal, na lógica do Estado e da moral conservadora, uma atividade ilegal praticada de forma ilícita não existe. Sendo assim, os governos não tratam do problema e os moralistas afirmam que a liberação será um incentivo ao consumo. Entretanto, no silêncio da ilicitude, o consumo só aumenta e os custos são divididos com a sociedade, que é quem banca a saúde no país.

A legalização das drogas deve ser encarada como um problema da sociedade. O consumo de drogas não se dá por incentivo, mas por “preencher” lacunas  também sociais, que passam por uma série de outros fatores. Fosse apenas uma questão de repressão e orientação não teríamos profissionais de saúde fazendo uso de entorpecentes e drogas legalizadas, como antidepressivos e opioides. Existe alguém que saiba mais das consequências do uso de drogas que um médico? Alguém tem dúvida que uma infinidade deles faz uso de drogas lícitas e ilícitas?

As lacunas acima referidas precisam ser enfrentadas, sobretudo quando mercados ilícitos tiram proveito da ausência do Estado. Alguns anos atrás, uma amiga, em Portugal, perguntou-me qual era a minha opinião sobre a dificuldade que o Brasil tinha em combater o narcotráfico, dada a complexidade dessa prática. Respondi que, para mim, era uma questão muito simples. A meu ver, o tráfico cumpre muitos papeis, desde o atendimento ao mercado à segregação de uma parcela da sociedade que o Estado não está efetivamente disposto a amparar.

Imagine quanto o Estado precisaria investir para dar conta de todas pessoas que são postas à margem de políticas públicas fundamentais, como emprego, moradia, educação,  saúde, lazer etc. Qual seria o tamanho da intervenção necessária para absorver e inserir socialmente todos aqueles que estão em torno do mercado das drogas? O tráfico é empregador, mas também  serve de muro de contenção. Enquanto suas atividades comerciais ficam restritas à venda de drogas, não existe incômodo e o poder público permanece inerte. A atuação estatal só aparece quando o crime resolve avançar para além da margem implicitamente permitida. Ficasse o tráfico restrito aos morros e periferias, a convivência entre ambos seria pacífica.

O custo para inserir os marginalizados é muito grande, principalmente, num país onde a concentração de renda é uma das mais severas do planeta. Para socializar os que estão em torno do tráfico, seria preciso dividir as riquezas de quem tem muito mais do que precisa. Para completar, temos um mundo onde a moral determina políticas públicas e condutas. Problemas como o das drogas  ferem interesses financeiros, mas também explicitam a falência do modelo de sociedade que a moral cristã prega, cujo deus,  senhor de tudo, acabaria por ser também responsável pelo mal que paira na Terra.

Minha defesa em relação à legalização das drogas vai além da questão do porte e do consumo de maconha. As demais drogas também devem ser descriminalizadas e a produção e comércio tratados como uma atividade formal e regulada pelo Estado. Os casos e estudos que correlacionam a liberação da maconha ao aumento da criminalidade desconsideram que o tráfico de outras drogas continuou atuante e o Estado permaneceu ausente. Logo, atribuir à maconha um papel determinante na criminalidade é tratar com simplismo o problema da segurança pública. 

Do ponto de vista moral, é inaceitável argumentos de que a descriminalização das drogas provocaria uma mudança de conceitos no que tange às suas consequências. Alegações como: “o que direi aos meus filhos, daqui pra frente, se antes sempre falei que consumir drogas era algo errado?”. Ora, da mesma forma que sempre diremos a nossos filhos que o consumo de álcool e cigarro são nocivos a saúde, além de gerar dependência e até a própria morte, do usuário ou de terceiros.

Problemas da sociedade devem ser tratados sem omissões, sem falseamentos. A marginalização é tão somente uma forma de institucionalizar a ausência do Estado. Minha opinião, provavelmente, não terá grande influência no debate, mas não tenho dúvida que, assim como em outras questões que impactam parcelas significativas da sociedade, não devemos criar cortinas de fumaça na vã tentativa de mascarar a realidade.

Compartilhe: