Tiago Germano é autor da coletânea de crônicas Demônios Domésticos (Le Chien, 2017), indicada ao Jabuti, e do romance A Mulher Faminta (Moinhos, 2018). Seu último trabalho é o volume de contos Catálogo de Pequenas Espécies (Caos e Letras, 2021).
Tiago Germano é autor da coletânea de crônicas Demônios Domésticos (Le Chien, 2017), indicada ao Jabuti, e do romance A Mulher Faminta (Moinhos, 2018). Seu último trabalho é o volume de contos Catálogo de Pequenas Espécies (Caos e Letras, 2021).
Lição de voto
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(Foto: Arquivo pessoal/Tiago Germano)

Quando morava em Porto Alegre, sofri um acidente com uma porta de vidro e tive que fazer uma cirurgia no tendão do polegar. No Hospital Cristo Redentor, um pronto-socorro da Zona Norte da capital gaúcha, me vi na mesa de cirurgia, sendo anestesiado para um procedimento de emergência. Depois da anestesia, o médico plantonista fez algumas perguntas e, notando meu sotaque, perguntou se eu era nordestino. Eu disse que sim e ele, prestes a me dar os pontos, ameaçou: “Pois eu vou costurar seu dedão errado pra você aprender a votar”.

Era 2016, auge do golpe contra Dilma. O hospital era uma unidade do SUS e a conta do procedimento, alguns milhares de reais que o governo federal cobrira inteiramente (incluindo as sessões de fisioterapia das quais tive alta precoce, perdendo parte do movimento do dedão) veio na minha correspondência, me deixando num misto de orgulho (do governo que ajudei a eleger) e de decepção (dos profissionais que o estavam implodindo).

Grogue da anestesia, não percebi o tamanho da gravidade do episódio. Me recuperando, nos dias seguintes, nem sequer me ocorreu denunciar o médico pelo abuso. Acho que a ficha só foi cair de fato alguns dias atrás, uns seis anos depois, quando postei o relato no Twitter em resposta ao depoimento de uma nordestina que foi ameaçada de morte na rua, em Porto Alegre.

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Falar sobre o assunto foi abrir o buraco sem fundo da xenofobia de que fui vítima mais de uma vez por lá, e do ceticismo de pessoas que repostaram o texto dizendo que era ficção (e justo eu, ficcionista, nunca me senti tão ofendido por acharem que eu estava ficcionalizando uma história da qual, infelizmente, ainda carrego a marca).

O dedo, tanto tempo depois, ainda dói se tento dobrá-lo. Dói mais, no entanto, ler a violência de comentários como “Volta pro Nordeste então”, coisa que de fato fiz sem um pingo de arrependimento e sentimento de derrota, e a sensação de que é melhor estar aqui entre os meus, numa época como essa de brutalidade e ignorância.

Ficou ainda o desejo, no entanto, de responder a esse médico. Ter uma conversa sobre ética e caráter, duas coisas que ficam bem evidentes quando alguém se vê numa posição de poder, com o outro numa situação de vulnerabilidade.

Não tenho dúvidas, por exemplo, de que no Sete de Setembro, enquanto o Brasil vivia uma de suas piores crises (econômica, social, cultural, moral), esse médico devia estar de folga, comemorando de verde e amarelo a independência e louvando o seu presidente “imbrochável”.

Queria dizer a esse médico que, em outubro, esse dedo nordestino aprendeu a lição: vai votar no que é certo. Vai apertar 13 com força, eleger a maior bancada esquerdista da história e dar ao resto do Brasil essa lição.

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