Graduado em Letras e Direito e mestre em Organizações Aprendentes pela UFPB
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Manhã entardecida
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(Foto: Telma Dias Fernandes)

Durante a semana, três vezes me acordo às cinco e meia da manhã, dou uma olhadela no sol ou na chuva ou no sereno, e me mando para o pilates. A professora Andréa Barachuy acolhe seus alunos como se fosse a primeira aula, fazendo uma pergunta especificamente a cada um deles, incluindo a aluna: como está o seu equilíbrio? como está o seu joelho? e a sua coluna? São perguntas cuidadosas, mas também uma prática para definir seu plano de exercício e orientações para aquelas pessoas que carregam suas dores em seus corpos. E quem sabe em suas almas também.

Na turma que faço parte, logo cedo, às seis da manhã, somos três. Alberto Magno, empresário, mais de setenta anos; Telma, historiadora, mais de sessenta anos; Adalberto Fulgêncio, funcionário público, quase sessenta anos. Numa dessas aulas, Telma e Alberto me convidaram para um almoço com uma dezena de pessoas que foram participantes de movimentos políticos de resistência à ditadura militar nos idos de 1960 e de 1970, mais notadamente movimento estudantil e movimento de guerrilha urbana em cidades da Paraíba e de Pernambuco. O almoço realizou-se num bairro da periferia da capital paraibana, numa casa arrodeada de alpendres e sombreada por fruteiras, muitas flores e quase uma centena contada de plantas medicinais, num verdadeiro paraíso para bem-te-vis, beija-flores, pardais e cibitos. Nenhuma gaiola. Muitos cantos.

Encontrei-me com pessoas alegres, despretensiosas e contadoras de histórias que os envolviam e alinhavam os retalhos de suas vidas. E da vida de um país. Mas darei apenas realce aos personagens que mais me chamaram atenção, ei-los: Alberto Magno, Calistrato e Emilson Ribeiro. Todos, ainda muito jovens, participaram da resistência à ditadura militar nos anos já referidos. Esses seres humanos entregaram suas juventudes aos seus sonhos e continuaram livres, mesmo engaiolados nas celas do presídio da ilha, da Ilha de Itamaracá.

Calistrato aparentemente o mais velho, sisudo, de fala resumida, brilhava os olhos quando se referia ao filme sobre Marighela, não deu tempo de perguntar o que ele achava do filme, num lance de um animal ligeiro, como um gato, de um gesto só e de imediato, ergueu a espinha, encheu um pouco os pulmões, e em conjunto com Emilson, bradaram: assistimos ao filme no cinema e ainda fizemos um discurso, teve gente que quase chorou. Os lábios e os dentes desses homens se mostraram, inclusive os de Alberto, que ouve pouco depois da prisão, ele disse que à época não tinha celular, mas o que mais recebeu na cadeia de seus inquiridores foi telefone, para prontamente soltar um riso maroto, meio irônico, meio deixa pra lá, como quem queria dizer: eu sei o que estou fazendo. Em seguida, a esse riso mais contido de Alberto, Emilson lhe flechou seus olhos, apontou-lhe o dedo e disse, esse foi o primeiro a cair, ficou mouco, mas não entregou ninguém, um dia antes da prisão, tínhamos discutido um plano expropriatório. Alberto caiu, mas ele não fez cair ninguém. Caiu em pé como em pé estava o pé de tamarindo carregado. Alguém disse: o tamarindo é azedo. Outro contrariou: Mas o azedo às vezes faz o doce da vida. E os risos entre lábios continuavam a se falarem. Calistrato emendou e contou uma conversa pessoal com Mariguella sobre como fazer a resistência, parecia um canto ritmado. A repercussão da fala da maior referência em cadeia nacional de rádio. Rádio Nacional. A greve de fome de presos políticos iniciada em Itamaracá que fez repercussão na Espanha, Itália e França. A expropriação de um mimeógrafo elétrico que fez quintuplicar os panfletos, tornar semanal um jornal e ampliar a área de atuação do movimento. E os panfletos ficaram mais bonitos, mais fáceis de ler, exclamou Emilson. As dificuldades financeiras e materiais de companheiros dos estados vizinhos do Rio Grande do Norte e de Pernambuco. O recuo na tentativa de sequestro do cônsul americano no Recife. O canto da internacional de forma uníssona no interior da prisão. A visita de Teotônio Vilela ao presídio. O respeito dos presos comuns pelos presos políticos. As mulheres que os acompanharam sem serem militantes. Ficar todos sentados quando a ordem era ficar em pé para receber o novo comandante. Os codinomes. A fragmentação de grupos para dificultar a identificação dos participantes. Os esconderijos. As mudanças de cidades e das dormidas. Passar quinze dias dentro de uma mata sem comunicação comendo broto de uma leguminosa. O acolhimento a companheiros de outros grupos. A formação bolchevique de Calistrato. O senso de organização de Emilson. A capacidade operacional de Alberto. A formação política desses três homens estruturada numa disciplina que impressiona. A disciplina do sonho. A ausência de raiva ou rancor. Falas fragmentadas. Não vi sinais de vaidade. Tempos passados. Vencidos. A quase certeza que valeu a pena e o olhar para numa crença que se renova. E passam a suspirar a possibilidade de um canal nas redes sociais para ficar contando essas histórias.

Eis um breve registro de uma manhã que entardecia envolto ao bate papo descontraído, mas marcado pela história. Obrigado pelo convite, professora!

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