Tiago Germano é autor da coletânea de crônicas Demônios Domésticos (Le Chien, 2017), indicada ao Jabuti, e do romance A Mulher Faminta (Moinhos, 2018). Seu último trabalho é o volume de contos Catálogo de Pequenas Espécies (Caos e Letras, 2021).
Tiago Germano é autor da coletânea de crônicas Demônios Domésticos (Le Chien, 2017), indicada ao Jabuti, e do romance A Mulher Faminta (Moinhos, 2018). Seu último trabalho é o volume de contos Catálogo de Pequenas Espécies (Caos e Letras, 2021).
Morto 290.314
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“Devemos aprender muita coisa… se a alma não for pequena.”

Foi uma das últimas mensagens do professor Wellington Pereira para uma amiga comum, também ela ex-aluna do curso de comunicação, que havia perdido o pai para a Covid-19 e lhe perguntava: “O que aprendemos com essa crise?”

Wellington acabara de anunciar uma pausa nas redes sociais. Havia perdido o irmão e descobriu que estava infectado em meio a exames de rotina. Ainda não sabia que, no espaço de poucos dias, também seria encaminhado para uma UTI. Parou de responder às mensagens e, pouco antes de um procedimento de intubação, morreu de uma parada cardíaca.

A última vez que vi o professor foi em 2018, depois do show de Chico Buarque em João Pessoa. Wellington estava entusiasmado: meses adiante, lançaria seu quinto livro de contos: As aventuras de José Jacinto em seu redemoinho particular. Não pararia por aí. No ano seguinte, lançaria o sexto: O voo noturno do pintarroxo. Em matéria sobre o livro, publicada por coincidência no dia do meu aniversário, destacava dois contistas paraibanos da nova geração: Phelipe Caldas e eu (não à toa, dois de seus ex-alunos).

Procurei-o no Facebook para agradecer a lembrança. Li alguns dos seus textos que refletiam ativamente sobre a pandemia. A mensagem que enviei permanece inbox, sem resposta. Wellington não a viu e jamais poderá respondê-la.

Soube de sua morte ontem de madrugada. Não era a primeira vez na pandemia que eu perdia alguém que conhecia, mas era a primeira vez que perdia alguém com quem de fato eu havia convivido, e que exerceu algum impacto em minha vida. A sensação que tive, lendo as notícias que me falavam da sua morte, o próprio Wellington já havia me feito experimentar em suas aulas: “A dor da gente não sai no jornal”, ele gostava de dizer, citando o Chico Buarque que um dia veríamos os dois, no palco.

Wellington Pereira morreu ontem e, hoje, para a grande maioria dos brasileiros, será só mais um número entre as quase 300 mil vidas que se foram, desde o ano passado.

A minha dor veio misturada ao cansaço. Enquanto Wellington morria mais ou menos da maneira que o presidente Bolsonaro, em vídeo, imitou com ares de chacota, eu estava numa reunião de trabalho na qual um colega chorava desesperado porque temia que o filho, ainda criança, pudesse estar infectado. Teriam contraído o vírus na casa do padrasto, um senhor negacionista que havia impedido que a própria mãe, de 90 anos de idade, tomasse a vacina.

Meu amigo chorou de repente, no meio de uma reunião de trabalho, da mesma forma que meus pais têm chorado semanalmente, diante do celular, seja porque acabaram de perder outro amigo, seja porque estão com medo. Tenho que escolher com muito cuidado os filmes que vemos aos domingos porque meus pais, como crianças de 60 anos, estão com medo da morte.

Não os culpo. O som da chamada de WhatsApp também me amedronta. Se antes a morte chegava por interurbano em longas espirais metálicas, como dizia Vinícius de Morais, hoje ela chega em notificações como a que eu recebi ontem, perdida entre memes, figurinhas, e notícias sobre o terrorismo de Estado que Bolsonaro e seus asseclas converteram na única política de saúde pública exercida pelo governo federal, desde o princípio da pandemia.

Minimizando a mortalidade da doença, combatendo o uso da máscara, promovendo aglomerações, sabotando o lockdown, atrasando a vacina, insistindo na farsa do “tratamento inicial” e espalhando fake news sobre as únicas instituições que encararam o problema com alguma seriedade no país — o STF, os governos estaduais e o SUS — Bolsonaro e seus apoiadores ressignificaram a tragédia. Transformaram a morte em algo banal, como uma piada de WhatsApp.

Não há mais consolo para o fim de Wellington e dos outros 290.414 brasileiros que padeceram como ele. Deus é a hipocrisia que inventam os que querem tirar o corpo fora e perdoar as próprias ações: os fanáticos do Messias, a maioria de um país comprometida na manutenção da pandemia e no esvaziamento de sentido dessas mortes.

Não há mais sentido. Não enquanto os números não fizerem mais diferença e a dor do povo não importe mais ao próprio povo. Não enquanto o cinismo imperar mesmo entre gente esclarecida — médicos pouco solidários com os colegas que tombam diariamente na linha de frente, jornalistas rasgando seus diplomas e maculando a memória de seus mestres.

“O problema é que vocês são gênios. E o mundo é dos medíocres organizados”, dizia Wellington Pereira nas mesas do Decom — me lembra Débora Ferraz (outra de suas ex-alunas), quando lhe aviso da morte e ela lamenta junto comigo o que aí está: os gênios indo embora, e os medíocres cada vez mais organizados.

Obrigado, professor, por ter tentado ensinar tanto, num mundo de almas pequenas que nada têm a aprender.

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