Jornalista e doutoranda em Informação e Comunicação em Plataformas Digitais pela Universidade do Porto (PT). Autora do livro Flores nos Canteiros (A União, 2018). Interesse em temas sobre feminismo, viagens, comunicação e redes sociais. flavia.lopes.sn[a]gmail.com
Jornalista e doutoranda em Informação e Comunicação em Plataformas Digitais pela Universidade do Porto (PT). Autora do livro Flores nos Canteiros (A União, 2018). Interesse em temas sobre feminismo, viagens, comunicação e redes sociais. flavia.lopes.sn[a]gmail.com
Não foi descobrimento
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Padrão dos Descobrimentos (Foto: Flávia Lopes)

Quando eu era criança criei uma frase: “o espelho é a verdade oposta”. Ou algo assim. Não lembro-me perfeitamente. Mas lembro que me achei genial por entender que a compreensão das coisas poderia se dar pelos opostos. A imagem reversa era uma verdade, mas ao contrário! Uau! Que gênia! Alguém chama o Aristóteles que nasceu uma filósofa aqui! Só que a frase e o conceito não tinha nada de novo. Era o óbvio. O espelho é reverso (é só ler Alice através do Espelho de Lewis Carroll para entender a metáfora com a literatura infantil), a verdade é imagem criada (como observou Nietzsche, a verdade é uma ilusão massificante). Mas, ainda hoje, o espelho para mim é objeto de reflexo e reflexão. Aliás, foi com o espelho e outros objetos, reza a lenda, que os portugueses conquistaram a atenção dos povos originários do Novo Mundo. E já que o óbvio do espelhamento é a imagem reversa de uma verdade criada e projetada, peguei-me imaginando: e se a história do descobrimento do Brasil fosse na verdade a história do descobrimento do espelho pelos povos indígenas?

Imagine! Mais de 500 anos depois. Um cacique, ancião, sentado num banquinho. Ao redor, outros indígenas ouviam a história: “o homem que descobriu o espelho”. Ele conta: “Há muito tempo atrás, uma dia, um povo branco, vestido dos pés a cabeça, chegaram em pedaços de madeira que flutuavam pelas águas. Eles tinham pernas, braços, cabeça e mãos. Igual a nós. Mas não falavam nossa língua. Eles queriam a nossa terra e em troca nos deram um objeto redondo e brilhante que imitava a luz do sol quando encontrava a direção do astro solar” – era o espelho. “O nosso líder, o grande mestre, matou os visitantes. A terra era nossa. Não a trocamos por objeto brilhante que fosse. A terra dá comida, sustenta nossa casa. O objeto brilhante traz só ilusão. Por isso, pegou o espelho e disse ter descoberto a imagem que move, que imita e que brilha”. Todos escutavam atentos. E por mais que soubessem que o espelho foi só um artefato trazido por outra civilização continuavam a repetir a história de que foi aquele índio, o que matou os forasteiros, o líder de todos, que descobriu o espelho.

Essa história criada, na minha cabeça, não é de todo um disparate. Aliás, foi uma prática comum pegar algo que já é conhecido por um povo, levar ao conhecimento de outro povo e chamar de descobrimento. Pelo menos é assim que chamam a invasão portuguesa ao Brasil. Até hoje, a data de 22 de Abril de 1500 é lembrada, e celebrada, como o Dia do Descobrimento do Brasil. O dia que Cabral e sua tropa avistaram aves e que isso era sinal de “terra à vista”! Foi assim que aprendi na escola.

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É fato que as navegações foram feitos grandiosos naquela época, do século XV. Imagine! Num período em que se achava que existiam monstros marinhos e de que a terra era plana (tem gente que acha até hoje!) lançarem-se ao mar em busca de novos mundos. É de uma coragem sem tamanho! Mas, o que me indigna é apegar-se a essa glória e a essa passagem heróica sem uma revisão empática da história. A que custo “descobriu-se” o Novo Mundo?  

Reconhecer a façanha das grandes navegações, avançar em uma tecnologia de transportes marítimo e traçar novas rotas ajudando a redesenhar o mapa mundial para uma civilização, não exime o sangue derramado que aconteceu como consequência disso. É preciso uma revisão no modo como se conta a história, tanto no Brasil como em Portugal, pois isso faz perpetuar o senso imperialista, de explorar, escravizar e dizer que descobriu novas terras quando já lá estavam os verdadeiros descobridores- os povos originários. 

Eu já escutei pessoas – brasileiras e portuguesas- dizendo que a colonização portuguesa foi boa porque teve a miscigenação de raças; que foi menos mal que a colonização espanhola- que dizimou os povos originários ao invés de “só” explorá-los como fizeram os portugueses. A colonização portuguesa no Brasil é vista até hoje como um marco heróico. Por isso é entendida não como invasão, mas como descobrimento. 

Brasileiros e portugueses perpetuam esse sentimento. Prova disso é um monumento gigante em Lisboa, chamado Padrão dos Descobrimentos, erguido em 1940, homenageando as figuras históricas que “descobriram” outros territórios. Um projeto arquitetônico belíssimo, aliás, de Cottinelli Telmo com esculturas de Leopoldo de Almeida. 

Já no Brasil, a data comemorativa para lembrar a chegada dos portugueses às terras brasileiras é conhecida, até hoje, como o “Dia do Descobrimento”. Ao meu ver, existe ainda uma relação semelhante a uma síndrome de Estocolmo (quando a vítima estabelece uma relação de afeto com o agressor) entre Brasil e Portugal, que persiste, apesar de tantos anos depois da colonização e de sempre fazermos pilhérias quando alguém diz o óbvio exclamando: “Ah! descobriu o Brasil!”.

Lembro que nos meus tempos de escola, na década de 90, fazíamos desfiles pelo colégio e festas comemorativas. Sempre vestiam-me de trajes indígenas. Colocavam um cocar, uma saia e um top. Pintavam a minha cara. Ali eu me transformava em uma indiazinha indefesa propagando um estereótipo cruel e celebrando o descobrimento, não a invasão.  

Mas, essa garotinha cresceu. E entendeu que os sentidos na vida são muitas vezes distorcidos, assim como quando uma imagem é refletida num espelho. Por isso, essa história de que Cabral descobriu o Brasil pode ser contada de outra maneira. Pois o descobrimento do Brasil é só mais um reflexo de verdade: existe, mas é distorcido.

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