Professora aposentada do DSS da UFPB, Autora de "Os fios (in)visíveis da produção capitalista" e "Informalidade e precarização do trabalho: as novas tramas da produção capitalista"
Professora aposentada do DSS da UFPB, Autora de "Os fios (in)visíveis da produção capitalista" e "Informalidade e precarização do trabalho: as novas tramas da produção capitalista"
O ensino privado para o trabalhador já estava contido no liberalismo de Adam Smith
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Foto: Fernando Frazão – Agência Brasil

Objetiva-se analisar a Proposta de Emenda à Constituição nº 206/2019 – do Sr. General Peternelli –, que “dá nova redação ao art. 206, inciso IV, e acrescenta o § 3º ao art. 207, ambos da Constituição Federal, para dispor sobre a cobrança de mensalidade pelas universidades públicas”. Na trilha adotada pelo atual governo, pretende-se transformar o ensino público universitário em ensino privado. A ideia teria saído da cabeça do general propositor? A história nos dirá que não. Veremos que não estamos diante de uma novidade, que a proposta reafirma um pensamento liberal ‒ por alguns esquecido, por muitos ignorado. Em face dessa realidade, tenho pensado que, talvez, conhecer o desenvolvimento capitalista seja estratégico para a classe trabalhadora prevenir-se contra os atuais ataques, quiçá preparar-se para lutar contra esse sistema de acumulação. 

Diz-se que “o uso do cachimbo faz a boca torta”. Eu podia estar me referindo ao governo, ao Estado ou ao proponente da medida, mas não é o caso. Refiro-me a mim mesma, e explico. Este não é um espaço acadêmico, mas eu quero declarar que a minha prática conduz imediatamente a referências bibliográficas, supondo que são a ferramenta essencial para a análise pretendida. Pois bem, como não vejo outra alternativa, vou me permitir esse encaminhamento. Note-se que até os contadores de estórias, cujo intento é, na maioria das vezes, recreativo, não abrem mão da História para atribuírem veracidade aos seus contos. Do meu ponto de vista, história, contradição e totalidade são imprescindíveis a uma análise rigorosa da realidade, o que não significa, obrigatoriamente, submeter o leitor às normas da ABNT. Prometo não enveredar por aí. 

Para que nos entendamos, devo esclarecer que a menção a alguns autores não tem o propósito de aparentar erudição, tampouco vou cansá-los com citações. Trata-se apenas de dar nome a quem, muito antes de nós, pensou a sério sobre a produção capitalista. Entenda-se que se eu não declaro quem é o pai da ideia, posarei de sabida, mediante a apropriação do pensamento alheio. 

Para começar, acho que procede convidar William Morris para essa nossa conversa. Trata-se de um ativista socialista inglês, que viveu no século XIX, com um currículo de fazer inveja. Aqui, quero ressaltar apenas o seu discurso sobre a separação das atividades manuais das intelectuais. Muitos autores tratam desse assunto, mas eu gosto dessa discussão feita por alguém ligado às artes. William Morris nos faz ver como o modelo de produção fordista arrancou das mãos do trabalhador – ele prioriza o artista – o cérebro que as move. 

Falei difícil? Explico: houve um tempo em que o sujeito que pensava e o que executava eram um só. O trabalhador/artista  que percebia a necessidade da bota, por exemplo, era o mesmo que buscava o couro, cortava-o, juntava as partes, até ter como produto final a peça idealizada. O mesmo sujeito pensava o produto e o executava. Não havia separação entre pensar e executar, o trabalhador intelectual e o trabalhador manual eram uma única pessoa. Aos poucos, o que não quer dizer em pouco tempo, a especialização do trabalho foi se impondo como um meio de aumentar a produtividade e o processo produtivo foi sofrendo alterações. 

Para ser breve, vou dar um salto histórico ao início do século XX, quando a divisão do trabalho se consolida. Um empresário norte-americano, chamado Henry Ford, fundou  a Ford Motor Company, com o propósito da produção em massa. Em lugar da produção manual, de produtos únicos, feitos artesanalmente, Ford introduziu o sistema de produção industrial, que passaria a ser adotado no mundo todo. Daí o nome fordismo. O modelo de produção fordista é um marco do desenvolvimento capitalista e não cabe adotar sobre ele nenhum juízo de valor. Ao trazer esse padrão produtivo ao debate, a pretensão é tão somente demonstrar que a proposta de universidade privada está em perfeita sintonia com o capitalismo, o que constataremos mais adiante. 

Evidentemente, não estou a sugerir que devemos nos render ao fato, apenas porque já era previsto. Mas devo lembrar que estamos ante a tentativa de materialização de uma ideia defendida desde o século XVIII, quando o liberalismo ainda reconhecia o trabalho como valor. Em sendo assim, embora não tenhamos espaço para um estudo aprofundado, parece-me válido pensar ao menos sobre a expropriação do pensar, de que se ocupou Morris, porque, seja o modelo de produção fordista ou qualquer outro, o capitalismo não quer trabalhadores que pensem. 

 Ora, que mãos se movem sem o comando do cérebro? Mesmo quando uma atividade é realizada de modo automático, sem que pensemos nos movimentos que estamos executando, o cérebro está ali no comando das mãos. Não é por acaso que a medicina se utiliza da expressão morte cerebral ou morte encefálica. Quando as funções do cérebro se extinguem, mesmo que  o corpo esteja intacto, o sujeito está legalmente morto. Sem espírito, sem alma, como queiramos nomear, o corpo nada pode. William Morris entende que não há artes menores, que a ideia de mãos que apenas executam um pensar alheio não se sustenta. No limite, por maiores que sejam as interferências intelectuais, há sempre algum pensar do sujeito que executa. Guardemos esse conhecimento. Mais adiante, ele vai nos ajudar a entender por que nos remetemos ao modelo de produção fordista para tratar da proposta que quer transformar o ensino público em privado.

Qual a relação entre o modelo de produção fordista e a transformação do ensino público em privado? Pense comigo. Quando a produção era artesanal, apenas alguns trabalhadores guardavam o saber sobre determinadas artes e ofícios. Com a produção em massa, que identificamos como produção fordista, um produto, ou uma mercadoria, é produzido por muitos trabalhadores. Lembra-se da separação entre o trabalho intelectual e o trabalho manual? Isso quer dizer que um certo tipo de trabalhador, um engenheiro, por exemplo, pensa as diferentes etapas de execução de um produto e as distribui para serem elaboradas separadamente. Depois, numa fase posterior, todas as partes serão reunidas, no momento chamado de montagem. Por fim, acrescidos alguns pormenores, a mercadoria estará pronta para ser vendida. 

Como se pode constatar, é o resultado de um trabalho coletivo. Ninguém pode tomar para si a autoria. A indústria põe a sua marca, e pronto. O produto é seu. Pois bem, para realizar cada uma das partes desse trabalho coletivo, um treinamento rápido pode ser suficiente. Em geral, não é necessário muito esforço para esse aprendizado. Facilmente se forma um operário, facilmente ele pode ser dispensado, porque facilmente, também, ele será substituído. Como a economia não cria postos de trabalho na mesma proporção em que cresce a população economicamente ativa, mais conhecida como PEA, sempre há força de trabalho sobrante. Há sempre mais pessoas procurando emprego do que vagas disponíveis. Note que aquela separação de trabalho manual e intelectual facilitou bastante a vida do empresário. Não só aumentou a produtividade, como também tornou possível a gestão de muitos trabalhadores disponíveis. Para o trabalho intelectual, às vezes, um engenheiro é suficiente a um setor. Já para o trabalho manual, o número de operários é bem maior, apesar de os avanços tecnológicos já terem promovido reduções significativas. Mas a proporção entre os dois indica que o mercado não precisa de engenheiros na mesma proporção que precisa de operários. Por sua vez, a formação do engenheiro requer uns bons anos de estudo, especialização, estágios etc., enquanto a formação do operário costuma ser feita na prática. 

Leia também: Toda riqueza é produto do trabalho

A ideia de formação começa a nos aproximar do objetivo. Novamente recorro a um pensador importante para que nos aproximemos um pouco do capitalismo, sob o liberalismo. Segundo essa teoria econômico-filosófica, o homem tem uma tendência inata à troca, daí que a relação comprar/vender seria para os liberais quase um impulso natural, que encontra no mercado o terreno propício à sua expansão. Nesse sentido, é inteiramente descabida a intervenção do Estado na economia. A conhecida expressão francesa laissez-faire (deixai fazer) simboliza a liberdade que deve ter a economia, cujo equilíbrio fica a cargo da “mão invisível” do mercado. Em sendo assim, cabe ao Estado a função de garantir a segurança pública e de manter a ordem e o progresso, mediante a defesa da propriedade privada. Quem não conhece esse discurso? Convém informar que o liberalismo, sem abrir mão de certos valores e privilégios, virou neoliberalismo no final do século XX e já é analisado, hoje, no século XXI, em seu caráter ultraliberal, com enormes perdas para os trabalhadores. 

Para não complicar, vamos tentar entender esse imbróglio a partir de Adam Smith, filósofo e economista escocês que escreveu e publicou uma obra importantíssima, em 1776 – Riqueza das nações. Considerado o pai da economia moderna, Smith afirmou o trabalho como fonte da riqueza. Ora, se a riqueza vem do trabalho, era de se esperar que o trabalhador merecesse um tratamento especial. Mas não foi nem é bem assim. Smith defende que o crescimento econômico, decorrente do trabalho, beneficiará capitalistas e trabalhadores, porém os trabalhadores precisam ser pacientes. Equivale a dizer que quando houver riqueza suficiente, do ponto de vista dos capitalistas, estes destinarão algumas migalhas aos trabalhadores. A promessa de que as duas classes seriam beneficiadas, feita há mais de 200 anos, continua sendo repetida pelos governantes, até hoje, sem que a prática a comprove. Vulgarmente, propõe-se deixar o bolo crescer para depois ser dividido por todos. Por falta de melhor argumento, essa treta continua sendo aplicada. E, por incrível que pareça, ainda há quem nela acredite. No Brasil, diante da imensa massa de trabalhadores proletarizados, ainda há iludidos à espera. Há também quem ouse dizer ao trabalhador impaciente: “deixe o homem trabalhar”, mesmo que o homem em questão jamais tenha trabalhado, nem tenha plano de fazer isso.

Ainda na trilha deixada por Smith, se o trabalho é a fonte da riqueza, é possível prever, mesmo que a divisão do trabalho implique simplificação do processo produtivo, a necessidade de investir na educação do trabalhador. Perguntamos a Smith que educação deve ser oferecida ao trabalhador. Para que a minha indignação com a resposta dele não se traduza numa interpretação raivosa, vou pedir licença para fazer algumas citações. Smith queria para os trabalhadores uma educação prática. Numa nota de rodapé de Riqueza das Nações, lê-se: “Não há instituições públicas para a educação das mulheres e, por essa razão, nada há de inútil, absurdo ou excêntrico no curso normal da sua educação. É-lhes ensinado aquilo que os seus pais e tutores julgam necessário ou útil à sua educação, e nada mais” (1993, p. 416). Ele mata dois coelhos com uma só cajadada. Distingue mulheres de homens, reduzindo-as a seres inferiores – era o século XVIII, lembremos –, para recomendar uma educação semelhante, destinada apenas a ser útil, funcional ao papel ocupado na sociedade. E, mais adiante, deixa claro que não se deve oferecer educação gratuita aos trabalhadores. Nas suas palavras: “Mas embora a gente comum não possa, em qualquer sociedade civilizada, ter tão boa instrução como as pessoas de posição e fortuna, contudo as partes fundamentais da educação, ler, escrever e contar, devem ser cedo adquiridas na vida das pessoas, de tal modo que a grande parte até das pessoas que se destinam às ocupações mais inferiores tenham tempo de as adquirir antes que tenham de se empregar nessas ocupações. Com uma despesa bastante reduzida o público pode facilitar, encorajar, e mesmo impor a necessidade da aquisição dessas partes mais essenciais da educação ao conjunto das pessoas”. E complementa: “O público pode fazê-lo através da criação em cada paróquia ou distrito de uma pequena escola, onde as crianças possam ser ensinadas através de um pagamento tão reduzido, que até o trabalhador comum o possa suportar; o mestre será em parte, mas não totalmente pago pelo público, porque se fosse totalmente ou na sua grande parte pago por ele, depressa aprenderia a negligenciar a sua atividade”. Finalmente, para não ser de todo execrado, ele fez uma ressalva com a qual temos concordância: “Quanto mais instruídos forem, menos sujeitos estão aos enganos do entusiasmo e da superstição, que entre as nações ignorantes frequentemente ocasionam as mais terríveis desordens”.

Nossa viagem ao passado acaba aqui. Retornemos ao hoje, no mundo e, claro, no Brasil. No fundamental, o mesmo mundo, porquanto submetido ao capitalismo. Contudo, mudaram as condições objetivas. Para onde vai crescer o mercado? É cada vez menor a capacidade de gerar postos de trabalho. A pobreza já não se restringe aos países de capitalismo tardio, tampouco há espaço econômico para tornar empreendedores todos os sobrantes. Ainda assim o fim capitalista persiste. Urge acumular. Para isso, o capital vale-se do Estado, tendo em vista a expansão da propriedade privada. Se para isso for preciso atacar direitos fundamentais, muda-se a Constituição. 

Para o Estado brasileiro, na sua total subserviência ao mercado, é mais simples adequar a Constituição ao que recomendara Smith no século XVIII, do que permitir aos filhos dos trabalhadores exercitarem a capacidade de pensar. Afinal, para o que se quer deles na sociedade, quanto menos conhecimentos tiverem, mais adequados tornar-se-ão. Nessa perspectiva, penso que procede prepararmo-nos para os ataques, o que equivale a conhecer o inimigo. Esse conhecimento devia ser função da universidade, mas a crítica ao sistema nas instituições públicas é tão ilusória quanto beneficiar os trabalhadores com a riqueza advinda da acumulação capitalista. Pensemos, pois, em alternativas a serem criadas fora da universidade, o que não significa  entregar de mão beijada a nossa universidade pública aos lacaios do capitalismo. Mas isso, infelizmente, não basta. A luta não é contra o general, é contra o capital.

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