Jornalista, fotógrafo e consultor. Mestre em Computação, Comunicação e Artes pela UFPB. Escreve desde poemas a ensaios sobre política. É editor no Termômetro da Política e autor do livro infantil "O burrinho e a troca dos brinquedos". Twitter: @gesteira.
Jornalista, fotógrafo e consultor. Mestre em Computação, Comunicação e Artes pela UFPB. Escreve desde poemas a ensaios sobre política. É editor no Termômetro da Política e autor do livro infantil "O burrinho e a troca dos brinquedos". Twitter: @gesteira.
O ópio do povo
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(Foto: Divulgação/Netflix)

“O futebol é o ópio do povo”. A frase amplamente dita no Brasil no período que antecedeu a Copa do Mundo de 1970 serviu, em muitos aspectos, também para dividir a população entre intelectuais e politicamente engajados contra todo e qualquer cidadão que estava animado para torcer pela Seleção Brasileira na busca pelo tricampeonato mundial.

É fato que a ditadura militar tinha interesse direto no sucesso do futebol brasileiro naquele Mundial do México. Um título reforçaria a ideia de união, de país forte, da nacionalidade desgastada pelo período de repressão, sequestros, torturas, desaparecimentos e mortes de civis causados pelo governo. Tanto houve interesse que Pelé, maior jogador de futebol de todos os tempos, sofreu pressão para participar da Copa.

A frase que abre esta coluna chegou até a ser atribuída a Nelson Rodrigues, com o objetivo de ganhar respaldo, sendo ‘referendada’ pelo gênio.

O intuito de quem proferia esta teoria à época era claramente encurralar a pessoa que gosta de futebol, como se o gosto pelo esporte transformasse imediata e irremediavelmente o indivíduo num completo alienado. O discurso na linha “nós contra eles” impunha, sob grave fragilidade argumentativa, uma conduta a ser seguida por quem quer que fosse contrário ao regime militar. Na boca de quem enfrentava a alegria da torcida era impossível gostar de futebol e, ao mesmo tempo, se indignar com o Estado de Exceção.

A tese volta à tona mais uma vez no momento em que o país enfrenta uma das maiores crises de sua história. Em decorrência da pandemia de covid-19, mais de 362 mil brasileiros já morreram, quase todos os setores da economia sofreram perdas e muito disso se atribui a equívocos na gestão do governo federal para o enfrentamento da pandemia.

Desta vez, a vítima não é só o futebol. O reality show Big Brother Brasil, devido à grande audiência, tem sido foco de ataques dos ditos mais inteligentes contra o público que assiste ao programa. E contra esse tipo de ataque, o fã de futebol já tem o couro grosso.

Ressalto que não se trata aqui de ser a favor da volta do futebol neste cenário de alta contaminação pelo novo coronavírus. Sou contra, já disse em outros momentos neste mesmo espaço. O assunto em questão é outro: gosto versus alienação.

A nova teoria que propõe fazer a divisão entre “alta cultura” e “baixa cultura” coloca os espectadores do programa da Rede Globo como pessoas cultural ou intelectualmente inferiores por sua suposta “alienação”. Classificam como impossível assistir ao BBB e questionar a política atual, como se uma coisa impedisse a outra.

É exatamente o mesmo preconceito cultural que aponta como inferior o gosto pelo futebol sob a justificativa de que não tem graça assistir a “22 marmanjos atrás de uma bola”.

Afirmo sem medo de errar que todo preconceito cultural se sustenta sobre o pilar da soberba. A empáfia de quem se acha superior sobrevive no julgamento de que o gosto do outro é inferior. Como se somente a arte plástica que está nos museus fosse arte de verdade, e quem pinta muros ao ar livre com sprays não fosse artista; como se música clássica fosse superior ao samba e ao pagode; como se, ainda, ler um livro fosse essencialmente superior a torcer por um time de futebol.

Listar os gênios das artes e da ciência que amaram – e amam – o futebol é perda de tempo contra arrogância infundada. O samba, o pagode, as artes de rua, e também o futebol são elementos diversos e essenciais para a nossa construção social e cultural coletiva.

Futebol é esporte, e também é arte, cultura, reunião e afeto. Julgar o nível cultural de um indivíduo serve mais para atacar a identidade e reafirmar diferenças de classes econômicas do que para reunir em torno de um propósito comum.

Texto publicado na edição de 16.04.2021 do jornal A União.

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