Tiago Germano é autor da coletânea de crônicas Demônios Domésticos (Le Chien, 2017), indicada ao Jabuti, e do romance A Mulher Faminta (Moinhos, 2018). Seu último trabalho é o volume de contos Catálogo de Pequenas Espécies (Caos e Letras, 2021).
Tiago Germano é autor da coletânea de crônicas Demônios Domésticos (Le Chien, 2017), indicada ao Jabuti, e do romance A Mulher Faminta (Moinhos, 2018). Seu último trabalho é o volume de contos Catálogo de Pequenas Espécies (Caos e Letras, 2021).
Os heróis de dupla face
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Em agosto de 2019, meses depois de um massacre numa escola de Suzano, em São Paulo, um professor de Educação Física conseguiu evitar uma tragédia da mesma natureza na escola em que trabalhava em Charqueadas, no Rio Grande do Sul, rendendo um adolescente que entrara no prédio portando uma machadinha e atacando os estudantes. No noticiário matinal, o professor era parabenizado pelos repórteres que pediam que ele descrevesse para as câmeras o seu “ato de heroísmo” perante o agressor, um ex-aluno da escola com um perfil psicológico que a mídia se apressou em associar a algum transtorno de ordem psiquiátrica.

Nem todo mundo fez a relação entre as duas notícias, mas fazia menos de vinte e quatro horas que, longe dali, na ponte Rio-Niterói, o sequestrador de um ônibus era abatido por um sniper e o ex-governador Wilson Witzel (PSC-RJ) descia de um helicóptero no local da ação, comemorando o feito como um gol do Flamengo na final de um campeonato, em pleno Maracanã. “Comemorei a vida”, disse Witzel posteriormente, numa coletiva de imprensa.

Para além da violência espetacularizada, permeando duas narrativas de heroísmo numa época em que, não raro, escolas, helicópteros e snipers passam a dividir as mesmas manchetes, ambos os episódios se ligam por um raciocínio enviesado, cada vez mais frequentes não apenas no palco da mídia, mas nos bastidores de nossa vida privada: o de que a virtude está não no bem, mas no menor dos males. É inegável que, nos dois casos, reações violentas foram necessárias para evitar um desfecho mais desastroso (como o que ocorreu no já citado massacre de Suzano ou no famigerado sequestro do ônibus 174, no ano 2000). O que é questionável é: devem tais reações ser associadas a atos heroicos e, como tal, comemoradas?

Trata-se de uma questão moral recorrente e que, numa outra proporção, o mundo está sempre prestes a enfrentar diante da crescente tensão entre EUA e China. Pode-se, com o pretexto de “salvar” um país, destruir-se um país? O dilema está presente em quase todas as guerras, e geralmente é resolvido com uma resposta que não elabora este impasse a contento – e o que é pior: vale-se justamente dele para justificar a resolução de outros impasses que não existiriam caso aquele primeiro dilema fosse resolvido de outra forma.

A respeito deste problema filosófico, é muito ilustrativa a anedota que conta a história de um homem cuja família estava passando fome e que foi buscar ajuda junto ao prefeito da cidade. A solução encontrada pelo prefeito foi simples: presenteou o homem com uma cabra. O homem voltou para casa muito satisfeito, ciente de que seus problemas tinham sido resolvidos, mas em pouco tempo aquilo que era solução tornou-se um novo problema, porque a cabra agora era uma outra boca que a família teria que alimentar. O homem volta então à prefeitura e pede nova ajuda do prefeito. O que o prefeito faz? Aceita ficar novamente com a cabra. O homem volta para casa de novo satisfeito, ciente de que o prefeito resolvera o seu problema mais uma vez.

Atribuir heroísmo ao professor que salva a escola de um massacre – parabenizando-o, antes mesmo de ponderar ou lamentar o ocorrido – é um impulso humano ao qual a mídia, com notória falta de senso e responsabilidade, vem se entregando de forma no mínimo inconsequente, coroando eventos cada vez menos atípicos com uma narrativa quase mítica, em que um homem comum converte-se em salvador, nos livrando do mal. Este verniz bíblico do cotidiano de nosso país – por princípio já violento, e cada vez mais brutal – não apenas está nos impedindo de entender o mal, mas nos impelindo a criá-lo, no pretexto de combatê-lo.

Quem tem a lógica mais doente: um jovem que entra numa escola armado, prestes a cometer um massacre julgando se vingar de seus abusadores, ou um governante que se regozija de uma execução pública, julgando “celebrar a vida” a bordo do mesmo helicóptero de onde dispara rajadas de metralhadora contra escolas e tendas de oração?

Onde está a virtude de uma nação cujos heróis não usam capas, deixando que quem as vista agora sejam os seus vilões? O Brasil é uma Gotham City repleta de Coringas, inclusive com alguns vestidos de Batman.

*O texto foi publicado originalmente no suplemento literário Correio das Artes.

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