Tiago Germano é autor da coletânea de crônicas Demônios Domésticos (Le Chien, 2017), indicada ao Jabuti, e do romance A Mulher Faminta (Moinhos, 2018). Seu último trabalho é o volume de contos Catálogo de Pequenas Espécies (Caos e Letras, 2021).
Tiago Germano é autor da coletânea de crônicas Demônios Domésticos (Le Chien, 2017), indicada ao Jabuti, e do romance A Mulher Faminta (Moinhos, 2018). Seu último trabalho é o volume de contos Catálogo de Pequenas Espécies (Caos e Letras, 2021).
Pelo direito ao silêncio
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(Foto: Andrey Burmakin/Dreamstime.com)

A Paraíba terceirizou o pôr do sol: deu certo; a conseqüência é que hoje não se pode mais ir a um restaurante por aqui sem ser importunado pela música ao vivo

A Paraíba terceirizou o pôr do sol: deu certo. Privatizou-se a praia, a tal ponto que se chegou ao cúmulo de levarem ao Ministério Público o pleito de cobrar de outros artistas — e de outras cidades, vão vendo… — os direitos autorais pela execução de uma peça musical escrita por um compositor falecido há quase um século (e, detalhe: já em domínio público; tão público quando o sol que, afinal, nasce para todos). Agora imaginem a burocracia que ia ser repassar os royalties de um bem comum ao seu verdadeiro detentor: o Criador, sobretudo numa época em que as igrejas cobram caro por Sua obra, algumas a peso de ouro e com direito a foto na Bíblia…

Pois é. A principal consequência dessa conversão de um direito público num direito privado — o direito de admirar a paisagem em silêncio, antigamente tão prezado, por exemplo, aqui na capital, onde órgãos como a Secretaria do Meio Ambiente eram mais rigorosos com um hábito hoje largamente violado pelas onipresentes caixinhas JBL — é a de que, até nos restaurantes (vejam bem: não falo dos bares e suas tradicionais apresentações de banquinho e violão, mas dos restaurantes), tornou-se quase que impossível comer e desfrutar de uma boa companhia sem ser importunado por um show de música ao vivo.

Nada contra a música e os músicos, diga-se. Faz tempo, depois da rabugem da velhice e do isolamento da pandemia, mas consigo me lembrar perfeitamente de como é bom gostar de um artista e pagar caro para ver o seu show na beira de um palco, cantando junto e me sentindo parte de uma multidão. Mas a coisa muda de figura quando o protagonista da noite não devia ser o artista ou a sua música, mas o prato ou a bebida que estou desfrutando, ou as companhias que escolhi para passar a noite: sejam meus amigos, minha família ou minha namorada; sejam eles muitos ou dois ou seja apenas eu, aproveitando a minha solidão se um dia eu quiser (em silêncio, numa mesa), comer e beber e ouvir meus pensamentos, jogando conversa fora com meus próprios botões.

Num restaurante, quero poder falar com o garçom ou ouvir os meus companheiros de mesa sem ninguém precisar levantar a voz; sem que, numa época de Covid, uma chuva de perdigotos seja despejada em meu prato pelos meus confrades ou por um saxofone, berrado a noite inteira com repertório ruim e a plenos pulmões, bem nos meus ouvidos. Eu falaria de etiqueta, mas não quero soar elitista além do que já devo ter soado ou como soa grande parte dos restaurantes aos quais me refiro, que insuportavelmente se arvoram de serem de “alta cozinha”, aplicando um golpe tão baixo.

Não, não é uma questão de etiqueta. É uma questão de educação mesmo. A mesma educação que falta quando um pastor grita no meio de um ônibus ou de uma praça, ou quando você liga o som muito alto na sua garagem. A educação de reconhecer que o direito de alguém de ouvir aquilo (seja a mensagem divina ou o seu rock envenado) termina onde começa o do outro de não ouvir (não importa a razão que for).

Voltando a me concentrar nos restaurantes, a equivalência desses direitos (numa musiquinha ambiente, quem sabe), devia ser observada quando ambos, os que curtem um som e os que não curtem, estamos num espaço em que ninguém avisou a ninguém que haveria música nem foi permitido sequer escolhê-la, ainda que no final o couvert artístico seja incluído sempre na conta, sem prévia consulta, de quem não curtiu nem solicitou aquilo.

E alguém poderá dizer: vai embora, então. Ninguém é obrigado a ficar num ambiente que julga insalubre. Mas pergunto eu: é mesmo justo transferir ao cliente (que por vezes não escolheu o lugar sozinho e não quer fazer desfeita com os demais) a responsabilidade e o constrangimento de ser a mosca na sopa e estragar a noite?

Acho difícil defender o empresário nesse caso, sobretudo quando o seu negócio não tem o perfil de um showbar, e não há informações em redes sociais ou mesmo no espaço sobre a atração musical mandatória. Mas haverá, claro, quem defenda o artista. É um profissional, ora essa, e tem ali seu ganha-pão. Mas não tenho certeza se um artista, inserido num contexto em que até quem está interessado no seu trabalho não presta muita atenção à sua música nem muito menos ao seu repertório autoral, se ele for além do cover, na verdade não precariza muito mais a classe que de fato a valoriza, apresentando-se em casas devidamente apropriadas onde já se vai com alguma expectativa, entre elas a de pagar um ingresso para o show, seja ele do repertório que for.

Sou escritor, e não pensem que sou menos empático à classe, por não viver de uma arte performática. Mas como seria se eu levasse a tiracolo meus livros aos restaurantes que frequento, e pedisse de mesa em mesa aos clientes que comprassem aquele produto? Ou, pior: combinasse com o dono do estabelecimento que, sem prévio aviso, todos os clientes deveriam adquirir o meu livro, devidamente acomodado sobre os pratos de comida, mediante o pagamento de R$ 39,90 adicionado à conta? Você se sentiria confortável se um ator começasse a monologar no corredor entre as mesas? Ou se dançarinos se atirassem ao chão em pleno jantar, numa coreografia pós-moderna?

Bom, eu talvez até gostasse mais disso do que de um saxofone tocando um repertório que começa com “Ave Maria” — quando nem são seis horas da tarde nem eu sou lá muito cristão —, passa por “My heart will go on” — num restaurante de cozinha italiana em pleno bairro de Manaíra — , e termina com “Updown funk”, na interpretação simpaticona do saxofonista — e eles até que tentam ser simpáticos, se aproximando das mesas e interagindo. Mas esse tipo de música ao vivo me faz pensar nas piores escabrosidades: em Jorge Vercillo, Tiago Iorc e Romero Britto. Em beach tennis, e em copo Stanley no intervalo. Em pias quadradas, na mansão do Gustavvo Lima, na estátua da liberdade das lojas Havan. Em sonhar em ir pra Disney, frequentar camarote VIP, colocar camisa pólo e sapatos de mocassim. Em comer pizza com luvinha, cheio de nojinho. No bendito gosto médio dominante por aqui, retrato de um liberalismo empreendedor que acha que pode tudo só porque abriu um MEI e gera meia dúzia de empregos.

O gosto médio tem que morrer. E se um dia ele vier a morrer, eu garanto: a canção de despedida vai ser um solo de saxofone.

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