Luísa é doutora em Estudos Literários e Feministas. Escreve e pesquisa a intersecção entre literatura e feminismo. luisagadelha[a]hotmail.com
Luísa é doutora em Estudos Literários e Feministas. Escreve e pesquisa a intersecção entre literatura e feminismo. luisagadelha[a]hotmail.com
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Por que ainda precisamos do feminismo?
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Há quase um mês saí do Brasil, mas o Brasil não sai de mim. Em Viena, onde atualmente passo uma temporada, a situação parece diferente para nós, mulheres, em diversos aspectos. Posso dar alguns exemplos pontuais: por aqui, o aborto é legalizado. Eu me sinto segura em andar sozinha à noite na rua, sem (tanto) receio de ser importunada por um homem. Nos cafés, nos restaurantes, na escola onde estudo alemão, encontram-se absorventes íntimos nos banheiros femininos, de forma acessível e gratuita: o conceito de pobreza menstrual parece ser desconhecido nesse ponto do Velho Continente. [E pode parecer esquisito até mesmo para brasileiros, mas cerca de 4 milhões de brasileiras não têm acesso a itens de higiene básica. Há meninas que deixam de frequentar a escola por conta de dificuldades como estas. Há mulheres encarceradas que não dispõem de insumos menstruais. A dignidade menstrual deveria ser um direito humano básico universal.] Por fim, me surpreendeu a manifestação ocorrida na Columbusplatz no último dia 8 de março, Dia Internacional da Mulher: havia diversas viaturas policiais, mas não para conter os protestos, e sim para defender as mulheres que ali exerciam seu direito de expressão.

(Foto: Luísa Gadelha)

Entretanto, nem tudo são flores. No mesmo dia oito de março, antes de ir à manifestação, eu me encontrava no curso de alemão que frequento. O professor levou um texto básico referente aos aspectos históricos e o surgimento da data, para que discutíssemos em sala de aula. Meus dois colegas, homens oriundos de países do Leste Europeu, com cerca de vinte anos de idade, pareciam apáticos, indiferentes ao tema. Não viam motivo para protestar nessa data, e tampouco para comemorá-la. Um deles disse não enxergar sua importância, tendo em vista que, atualmente, os direitos são iguais para todas as pessoas. O segundo apontou que, em sua casa, seus pais dividem igualmente as tarefas domésticas. E emendou: “por que não existe, também, o dia internacional do homem?”

Estupefata, eu poderia recorrer a causas mais genéricas para explicar o marasmo dos meus colegas. Recentemente, um estudo publicado no Financial Times indicou que há uma espécie de abismo ideológico entre homens e mulheres da Geração Z, aquela que compreende pessoas entre 18 e 30 anos, em diversos países do mundo. A pesquisa é extensa, mas, trocando em miúdos, aponta que os homens têm seguido uma tendência conservadora em relação às diferenças de gênero. As mulheres, por outro lado, voltam-se para posturas mais liberais. Tais diferenças não são encontradas de formas tão robustas nas gerações mais velhas. Essa pesquisa poderia explicar a atitude dos meus colegas, homens jovens, mas explica todo o resto?

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Quando disse, no início deste relato, que o Brasil não saiu de mim, me refiro ao fato de que sigo acompanhando as notícias de lá. Neste início de semana, fomos bombardeados com notícias sobre a prisão dos mentores intelectuais do assassinato da vereadora Marielle Franco e do seu motorista, Anderson Gomes, em março de 2018. O espantoso em toda a história é o fato de o então chefe da Polícia Civil do Rio de Janeiro ter sido apontado como um dos mandantes. Em outras palavras, um agente público não só permitiu que um assassinato fosse cometido, não pecou por omissão, ele atuou ativamente para que o assassinato ocorresse. Repito: o Estado brasileiro assassinou uma parlamentar. Mulher, negra, favelada.

Retornemos ao dito “Velho Continente”, reduto de bem-estar social, onde aparentemente não sofremos com os tais problemas do terceiro mundo: por aqui, um jogador de futebol brasileiro estuprou uma mulher, foi condenado pela Justiça, e libertado após o pagamento de uma fiança de um milhão de euros. Sim: o Estado, que deveria nos proteger, acaba por nos condenar a assistir a nossos agressores impunes.

Os casos de Marielle Franco e de Daniel Alves, lá e cá, são emblemáticos para responder à questão (não tão retórica) que fiz no início deste texto. Nossos corpos continuam públicos, passíveis de precificação, nossas vidas ainda valem menos. Não é apenas a sociedade que enxerga assim: também o Estado. É para isso que ainda precisamos do feminismo, e aqui recorro a uma fórmula já batida: o feminismo nada mais é do que a ideia radical de que mulheres são seres humanos.

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