Morreu nesta quarta-feira (4), aos 92 anos, a arqueóloga Niéde Guidon. Reconhecida internacionalmente, ela deixa uma contribuição imensurável para a ciência, tanto no Brasil quanto no exterior. Arqueóloga franco-brasileira, Niéde Guidon desempenhou um papel fundamental ao inserir o país no debate global sobre a ocupação das Américas, graças a descobertas inovadoras no Parque Nacional da Serra da Capivara, no Piauí.
Através de investigações meticulosas, escavações pioneiras e um compromisso inquebrantável com a preservação cultural, Guidon expandiu os horizontes do conhecimento sobre a pré-história sul-americana — tornando-se uma referência para cientistas, educadores e defensores do patrimônio histórico.
Natural de Jaú, interior de São Paulo, onde nasceu em 12 de março de 1933, filha de mãe brasileira e pai francês, Niéde Guidon graduou-se em História Natural pela Universidade de São Paulo (USP) em 1959. Sua paixão pela arqueologia pré-histórica a conduziu à Universidade Paris-Sorbonne, onde realizou especialização e doutorado, dedicando sua tese às pinturas rupestres do Piauí — estado que se transformaria em seu lar intelectual e afetivo por mais de cinco décadas.
Foi em 1963, durante uma exposição em Minas Gerais, que ela tomou conhecimento pela primeira vez sobre as pinturas rupestres da Serra da Capivara. Pretendia visitar a região no ano seguinte, mas o golpe militar de 1964 alterou seu destino: acusada sem fundamento, foi forçada a deixar o Brasil e exilar-se na França. Lá, integrou o renomado Centre National de la Recherche Scientifique (CNRS) e a Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais.
Em 1973, já reconhecida como pesquisadora de destaque, retornou ao Brasil à frente de uma missão arqueológica financiada pelo governo francês. Esse foi o começo de uma trajetória que se estenderia por décadas. Por meio de escavações sistemáticas na região de São Raimundo Nonato (PI), Niéde e sua equipe catalogaram mais de 1.300 sítios arqueológicos, contendo pinturas rupestres, vestígios de fogueiras e instrumentos que contestaram as teorias vigentes sobre a chegada do homem ao continente americano.
Enquanto a hipótese predominante sugere que os primeiros humanos atravessaram o Estreito de Bering há aproximadamente 15 mil anos, os achados na Serra da Capivara apontam para ocupações muito mais remotas: pinturas com até 35 mil anos, fogueiras de 48 mil anos e ossos humanos datados de 15 mil anos.
Esses indícios sustentam a possibilidade de que o povoamento das Américas não se deu apenas por migração terrestre a partir da Ásia, mas também por rotas marítimas pelo Atlântico, originárias da África. Ainda que polêmica, essa perspectiva abriu um debate científico essencial sobre as diversas vias de ocupação do continente.
Com a criação do Parque Nacional da Serra da Capivara em 1979, fruto da persistente atuação de Guidon, o Brasil passou a contar com a maior concentração de sítios arqueológicos das Américas em uma área protegida de 130 mil hectares. O parque foi reconhecido como Patrimônio Mundial da Humanidade pela UNESCO e se consolidou como um centro de excelência em pesquisas sobre a pré-história.
Além de sua dedicação à ciência, Niéde empenhou-se na preservação do parque, superando a falta de recursos e o descaso do poder público. Fundou a Fundação Museu do Homem Americano (FUMDHAM), responsável pela gestão do parque e pela implementação de iniciativas educacionais, sociais e turísticas. Seu trabalho uniu pesquisa científica, envolvimento comunitário e desenvolvimento sustentável.
Niéde Guidon aposentou-se oficialmente em 2020, após contrair chikungunya, doença que reduziu sua mobilidade. Ainda que afastada das atividades de campo, manteve-se como uma voz influente na proteção do parque e na promoção da ciência nacional até seus últimos anos de vida.
Seu legado é incomensurável: não apenas redefiniu o entendimento sobre a ocupação das Américas, mas também estabeleceu um paradigma de ciência engajada com a mudança social e a preservação da herança cultural.
Com informações da ALPI.