Médica pela UFCG. Medicina Baseada em Evidência. Atendimento Humanizado. Defensora do SUS. Feminista. Instagram: @priscilawerton.
Médica pela UFCG. Medicina Baseada em Evidência. Atendimento Humanizado. Defensora do SUS. Feminista. Instagram: @priscilawerton.
A Medicina e o Xibom Bombom
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Hoje eu vim contar uma estória pra vocês.

Certa vez, estava em um bar conversando com uma amiga, a Jordana Bevan, que também é médica. Discutíamos sobre medicina e o bolsonarismo, e ela me falou qual a sua opinião sobre o assunto. Então, resolvi compartilhar com vocês.

Segundo ela, os médicos são essencialmente pessoas que se importam apenas em ganhar dinheiro, sendo este um perfil que se arrasta do passado até hoje.

Indaguei se isso não seria uma generalização, afirmando que existem, sim, médicos que além de almejar ganhar dinheiro, também se importam com os pacientes e gostam de suas profissões (confesso que me coloquei na defensiva por não me ver nesse lugar).

Então, ela argumentou: “A regra é que a classe médica não possui consciência social, é egoísta, só se importa com o próprio benefício e está pouco se importando com a população pobre, que é a grande maioria dos seus pacientes”. Concluindo serem estes os motivos que levam a classe médica a ser bolsonarista. Ela ainda afirmou que eles sabem que o plano de Bolsonaro para o país é exatamente o que gostam: “o pobre cada vez fica mais pobre e o rico cada vez fica mais rico, e o motivo todo mundo já conhece: é que o de cima sobe e o de baixo desce”. Sim, ela jogou essa referência musical, rs.

Daí, veio a pergunta: “Você conhece algum médico que não é bolsonarista?“

Foi aí que a minha ficha caiu: É, são muito poucos!

Jordana continuou: Engraçado é que uma classe que tem por função cuidar da vida dos outros, zelar pelo bem estar da população, é justamente a classe que menos de importa!

Quem apoia o Bolsonaro quer mesmo é que a população pobre se foda, que os doentes morram e seu único interesse é valorizar uma categoria historicamente privilegiada no Brasil, a sua própria categoria, que, aliás, normalmente vira um “negócio” de família. É assim que funciona o privilégio branco e familiar entre os médicos tradicionais brasileiros.

Então, depois dessa reflexão que ela jogou na mesa, lembrei de uma fala da minha avó bolsonarista: “Por que vou ter raiva do Bolsonaro se ele só ajudou a minha neta a ter mais emprego e a ganhar melhor?”

“Então dá para entender o motivo de um médico ser bolsonarista, apesar de ser absurdamente egoísta, hipócrita, perturbador e podre, dá pra entender.” Ela concluiu, com um sorriso nervoso.

Jordana disse que queria me explicar os motivos dos “bolsomédicos”, para que eu não fosse compreensiva com eles, já que, apesar de terem uma lógica, os motivos só refletem a podridão que essas criaturas têm por dentro.

Ela falou que deveria ter um psicotécnico para ser médico e também ter uma cadeira no curso de medicina só sobre ciências sociais e a área da saúde (acenei concordando), para ensinar a essas pessoas que a profissão de médico não é só decorar protocolo. É empatia, é ver o indivíduo inserido em todo o contexto que o envolve.

Então, ela sugeriu que eu pesquisasse ali mesmo no celular e que lêssemos algumas definições para melhor embasar aquela argumentação. Primeiro procuramos a definição de saúde que, segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS), é o “estado de completo bem-estar físico, mental e social e não apenas a ausência de doença.” Isso desde 1948… então nós, como médicas, devemos nos importar com todos os aspectos que dizem respeito à saúde: físico, mental e SOCIAL de um indivíduo, incluindo: sua sexualidade, identidade de gênero, condições de moradia, alimentação, acesso à direitos básicos como educação, renda familiar e tantas outras questões que são absolutamente políticas.

Ela tomou a palavra: — Esse papo de que não vai se posicionar politicamente, ou qualquer ato de apoio a Bolsonaro faz de alguém um médico ruim.

E continuou: “um médico que não respeita um paciente trans, que acha que relacionamentos homoafetivos são errados, que vê a mulher como uma fraquejada, que acha que uma mulher foi estuprada porque mereceu, que não acha nada demais no aumento do preço da energia, da gasolina, do gás, afinal, esses ‘pequenos’ aumentos não ferem a realidade privilegiada dele… um médico que desvaloriza a comunidade indígena e que não está nem aí para as questões ambientais, um médico que não defende a vacinação, o uso de máscaras, o distanciamento social, que não apoia a ciência e não pratica medicina baseada em evidência. É, esse é um médico ruim.”

As palavras dela me fizeram refletir.

À essa altura ela estava muito empolgada em sua explanação e seguiu: — Os absurdos dos ideais bolsonaristas ferem diretamente os princípios básicos de SUS de Universalização, Equidade e Integralidade. Como um médico desse vai trabalhar no SUS? – e acredite, todo médico vai trabalhar no SUS em algum momento, por mais que ele odeie pobre e ache que o SUS é péssimo.

Então ela resolveu ser mais didática e me disse que no site do Ministério da Saúde (MS) é possível encontrar descritos esses princípios, então, foi falando e acrescentando sua opinião diante da cada um deles.

Universalização: a saúde é um direito de cidadania de todas as pessoas e cabe ao Estado assegurar este direito, sendo que o acesso às ações e serviços deve ser garantido a todas as pessoas, independentemente de sexo, raça, ocupação ou outras características sociais ou pessoais.

Exaltada, ela acrescentou: “Aí o médico bolsonarista defende privatização de serviço de saúde e a distribuição privada de vacina? Aí não dá, né? Achando pouco, vai lá e apoia a saída dos médicos cubanos do país, médicos esses que levaram pela primeira vez, em muitas comunidades, atenção básica em saúde para pessoas extremamente pobres em locais de difícil acesso, que voltaram a não ter médicos já que os médicos brasileiros se acham bons demais para esses cargos.” E prosseguiu: “Nós já trabalhamos em comunidades, sabemos do que estou falando. Médicos que ficaram revoltados com a ideia de receber colegas estrangeiros sem revalidação de diploma durante uma pandemia, enquanto assistiam às pessoas morrerem diariamente por falta de assistência médica suficiente para a quantidade de pacientes. Eu não acho que esses posicionamentos estão de acordo com o princípio da Universalização.”

Eu estava atônita, muda. Não dizia uma palavra, só tentava acompanhar o raciocínio dela…

Jordana falava com propriedade, e continuou seu discurso falando sobre outro princípio do SUS: a Equidade. Segundo o MS, “O objetivo desse princípio é diminuir desigualdades. Apesar de todas as pessoas possuírem direito aos serviços, as pessoas não são iguais e, por isso, têm necessidades distintas. Em outras palavras, equidade significa tratar desigualmente os desiguais, investindo mais onde a carência é maior.”

Ela completou falando que esse é o princípio que os bolsonaristas mais odeiam: oferecer oportunidades desiguais às pessoas com necessidades desiguais. E exclamou: “Nossa!!! Perdi as contas de quantas vezes vi esse princípio ser distorcido por médicos bolsonaristas!”

Demos uma pausa. Algumas mastigadas e goles de cervejas depois, ela tomou fôlego e leu sobre a Integralidade no site do MS:

“Este princípio considera as pessoas como um todo, atendendo a todas as suas necessidades. Para isso, é importante a integração de ações, incluindo a promoção da saúde, a prevenção de doenças, o tratamento e a reabilitação. Juntamente, o princípio de integralidade pressupõe a articulação da saúde com outras políticas públicas, para assegurar uma atuação intersetorial entre as diferentes áreas que tenham repercussão na saúde e qualidade de vida dos indivíduos.”

Então parou um pouco, sorriu sarcasticamente e disse: “Ou seja, você é médico e atende a população pobre. Como você está disposto a contribuir para a saúde dessa população se você vota, defende, incita, incentiva pessoas a votarem em um governo que acaba com os programas sociais, que não oferece condições mínimas para que essa população sobreviva? Seu trabalho não faz sentido, você está claramente sendo médico só pelo dinheiro. A saúde da população pobre, mais vulnerável às doenças, está nas suas mãos, mas você escolheu apoiar um governo que só te favorece e você suporta essa população só pra ganhar o seu. Infelizmente a verdade é essa.”

Continuou entusiasmada: “Como alguém pode ser o responsável por cuidar da saúde de um paciente o qual não se importa minimamente? Sim, porque se está apoiando que esse paciente pobre seja cada vez mais marginalizado e tenha cada vez menos direitos garantidos, certamente é porque não se importa minimamente com esse ser humano que finge cuidar. Está ferindo o SUS por outros motivos também, como apoiar a sua precarização, que é o que defende o governo mitológico”.

Eu perguntei:

— Então quando um médico é bolsonarista ele está ferindo os princípios do SUS e está indo contra a própria definição de saúde da OMS?

Ela: — Sim.

Eu: — E ele deveria ser médico então?

Ela: — Fica aí a reflexão. Tomou um gole de bebida e disse: “Alguém dá logo outro emprego que gere lucro para essas pessoas saírem da medicina? Obrigada!”

E terminamos essa conversa com ela dizendo:

“O médico bolsonarista é um paradoxo.”

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