Graduado em Letras e Direito e mestre em Organizações Aprendentes pela UFPB
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Amores contados, amoras infinitas
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(Foto: Judy Dean/Flickr)

Como qualquer outro dia que acontece diariamente, Silva foi ao escritório. O outlook marcava uma reunião ordinária, bem ordinária, feito laranja comum. Todas iguais. Uma reunião de calendário mensal onde o grande desafio é estabelecer o quórum para, em ato contínuo, pautar a discussão da pauta. Pautar a pauta. Buscá-la na invisibilidade de mais um dia de trabalho. Em resumo, uma reunião sem agenda.

Enquanto isso, todos davam opinião sobre o clima. Falas desconexas. Fragmentos de idiomas. Lista de fatos: um toma café e pergunta se os demais querem, ninguém aceita… outros fazem referências futebolísticas numa tentativa de marcar a brasilidade de um esporte britânico. Alguém chega esbaforido, atravessando a sala sem dar o alerta; e ainda chama o trânsito de inferno. Alguns dão risos que espelham dentes esbranquiçados, isonômicos, como reflexos de brincadeiras sem graça. Poucos chegam escancarando bocas com línguas engolidas: mudas. Todos desalinhados, nauseados, buscam uma ponta de linha para se acochar numa cabeça de agulha, esforçando-se para um possível alinhamento salvador, como uma dinâmica para o começo da reunião.

Nesse imbróglio, sobram troca de olhares. Dizeres são ditos com plúrimas intenções. Em um deles, Silva, desafiando os sentidos, faz referência aos botões das roupas que as fecham e as abrem ao serem vestidas e desnudadas. Silva também lembra dos botões das flores que se abrem e se fecham ao sabor das estações; e, ainda, dos botões dos corpos que se eriçam ao toque dos sentimentos ausentes, buscando conexões, inversamente à malícia. Nesse momento, lembranças involuntárias levam Silva para outros cantos e ele se encoraja para o convívio com os saltos do tempo. Silenciosamente, passa a falar com os olhos para logo, logo falar com a própria voz, desenvergonhada, impulsionada pela força das contemplações.

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Silva esquece a lição dos amores aprendidos, metrificados, pensados num movimento retilíneo uniforme, para se relacionar com os sabores das amoras. Olhá-las, cheirá-las, tocá-las, degustá-las, comê-las! Absurdamente, chupá-las, engolindo em gotos sucessivos seu líquido meloso. As amoras viraram uma diversão para Silva. O gosto delas ensopa a sua boca que esborra baba e lambuza o seu rosto numa procura da razão. Uma procura vã, como quem procura comadre fulozinha, porque os sentidos às vezes faltam, não se justificam e nem temem o desconto no salário. Outras vezes, os sentidos falham, abrindo um buraco que o suga numa constelação de amoras. Os sentidos também se acabam e quando isso ocorre, Silva perambula pelas noites adentro. E quando ele está perdido os largos, as ruas, praças, calçadas e marquises parecem ser os melhores cobertores, mas ele prefere os quintais. Essas imbricações expõem uma clarividência de múltiplas possibilidades de confusão, mas Silva não quer mais brigar, nem com ele mesmo. Por isso ele caminha por entre sítios de fruteiras. Em trilhas. As frutas passam a ser o seu mundo, todavia são as amoras suas preferidas.

Aí, alguém, como se fosse líder, fala assertivamente: bom dia, meus amores! Feito professor entrando na sala de aula. Todos ficam entalados, como se temessem um empalamento medieval. Inclusive Silva. A voz verticalizada verifica o quórum e propõe quatro pontos de pauta: apresentação, informes, discussão, encaminhamentos, nessa ordem, sem adjetivos! Mudos, todos concordam. E a reunião, após uma hora, como se fosse um fim, democraticamente, se inicia.

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literatura