Anderson Pires é formado em Comunicação Social – Jornalismo pela UFPB, publicitário e cozinheiro.
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“E a voz solitária da juventude grita: O que é a verdade?”
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Foto: Reprodução Netflix

Assisti ao documentário Nixon e o Homem de Preto. O filme é sobre a história de Johnny Cash até o período que Nixon foi presidente. Não conhecia muito sobre a sua história. As referências que tinha eram suas músicas, que foram das mais tocadas nos Estados Unidos nas décadas de sessenta e setenta.

Mas a história de Johnny Cash é bem mais interessante do que imaginara. Ele nunca se propôs a ser militante político, mas tinha uma vivência que permitia perceber “o que é certo”, abraçar causas humanitárias e até o resgate de crimes cometidos contra povos e minorias.

Cash nasceu numa família pobre no Arkansas, sul dos Estados Unidos, e teve uma vida de muito sofrimento. Seja pelas dificuldades financeiras, passando pela perda do irmão de forma trágica, até a relação difícil e abusiva que tinha com o pai.

Mas o filme é principalmente uma demonstração de equilíbrio e compreensão. O Homem de Preto, como também era conhecido, é o título de uma música sua que faz alusão à causa dos negros e à segregação que sofreram. Também cantou a dor dos presos e a condenação para além da pena. Amparou os índios com seus versos em repudio às agressões que sofreram. Com a sua poesia musicada expressou posição em relação ao Vietnã e confrontou o Governo Nixon, que desqualificava os jovens na defesa da paz.

Cash disse: “Eu visto o preto pelo pobre e oprimido, vivendo no lado faminto e sem esperança da cidade. Eu o visto pelo preso que há muito tempo já pagou pelo seu crime, mas está lá porque ele é uma vítima dos tempos.”.

Em plena crise do Vietnã, quando os Estados Unidos estavam divididos entre os que eram contra ou favor da guerra, Johnny Cash fez um pronunciamento no programa de TV que apresentava, referindo-se ao discurso de Nixon em cadeia nacional: “Minha família e eu apoiamos o presidente dos Estados Unidos em sua busca por uma paz longa e justa”.

Imediatamente, vincularam a fala de Johnny Cash a um alinhamento político com o presidente americano. Até aquele momento, sempre manteve distância dos políticos, apesar de suas músicas terem forte apelo social. Nixon tentou se aproveitar da popularidade do músico e o convidou para tocar na Casa Branca para seus convidados. Ainda pediu que no repertório fossem incluídas duas músicas com viés conservador, em contraponto aos que faziam oposição à guerra.

O roteiro traçado por Nixon parecia perfeito, inclusive acreditava que Cash se prestaria a cantar as músicas que pediu. O presidente e seus assessores avaliaram mal. Alguém com as composições de Johnny Cash, com histórico de engajamento à causa indígena, negra e dos presos, que esteve no Vietnã e presenciou os absurdos provocados pela guerra, não trairia a si mesmo.

Cash não era político, mas tinha muita sensibilidade para as questões humanitárias. Não era visto em passeatas e manifestações, mas esteve perto dos índios, dos presos, dos negros e soldados no Vietnã, para cantar, escutar e vivenciar suas experiências. Sua militância estava nas suas músicas, sempre de forma delicada, no estilo lamento que o country faz tão bem. E foi assim, que ele resolveu enfrentar o presidente Nixon, se contrapor à guerra e à opressão que era imposta aos jovens que militavam pela paz.

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Em momento algum Cash disse que apoiava ataques armados. Apoiar a “paz longa e justa” dita no discurso de Nixon, era exatamente o que ele defendia, no sentido literal, sem margem para desdobramentos semânticos, como a Casa Branca tentava utilizar. A paz exaltada era um ato e não uma figura de linguagem para justificar a violência.

No dia da apresentação na Casa Branca, tudo indicava que correria conforme as expectativas de Nixon, que imaginava sair dali com mais apoio popular, pois tentava vincular a sua imagem a de um artista admirado por muitos. O tiro saiu pela culatra. Ao contrário das músicas pedidas pelo presidente, Cash cantou “The Ballad of Ira Hayes”, “Man in Black” e “What is Truth”. Respectivamente, tratavam da história de um índio que foi recrutado para guerra, sobre negros e oprimidos e a mais importante naquele momento, fazia um apelo com muita poesia e delicadeza para que escutassem a juventude.

Ao contrário de levantar bandeiras ou distribuir gritos de protesto, Cash usou o espaço que conquistou para dizer ao homem mais poderoso do mundo, que não era certo marginalizar a juventude e aqueles que viam o mundo sob outra perspectiva: a paz era objetivo maior que a demonstração de força e a busca por interesses econômicos. 

Apesar da repercussão, Nixon não escutou o apelo de Cash. Intensificou os ataques ao Vietnã, ampliou seu preconceito e falta de senso humanitário, fechou os ouvidos à uma massa de jovens em busca de paz e se enterrou no caso Watergate, que resultou na sua renúncia, antes que sofresse impeachment.

O exemplo de Johnny Cash remete ao momento que vivemos. Faltam mais vozes contrárias. Falta o apelo dos mais jovens isentos de interesses. Não basta o cancelamento, ou a busca pela imposição do pensamento. A verdade é relativa, precisa ser questionada.

O genocídio que Nixon promoveu estava entranhado dos mesmos valores que, hoje, vemos o presidente do Brasil utilizar, para que milhares de mortes diárias aconteçam em decorrência de uma pandemia. O avanço da insanidade é destruidor em qualquer momento da história. Ainda mais devastador é promover a marginalização do pensamento contrário.

Usar máscaras, defender vacinas e distanciamento social não podem ser interpretados como posicionamento político. É uma postura humanitária, como ser contra a guerra e ao uso de armas. Está na hora de se cantar mais pela vida, pela necessidade de empatia e fazer escutar quem busca apenas viver sem toda essa angústia. Que as vozes solitárias gritem, para que, em algum momento, até quem vive de negar, pense: o que é a verdade? 

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