Anderson Pires é formado em Comunicação Social – Jornalismo pela UFPB, publicitário e cozinheiro.
Anderson Pires é formado em Comunicação Social – Jornalismo pela UFPB, publicitário e cozinheiro.
Escutaram os Titãs e não entenderam nada
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Show dos Titãs no Espaço Cultural de João Pessoa, junho de 2023 – Foto: Anderson Pires

A minha adolescência em Maceió foi bem intensa. A capital de Alagoas tem uma das orlas mais bonitas do mundo. A cor da água impressiona. É resultado da concentração de sal e corais que margeiam todo litoral alagoano. Tínhamos uma vida de muita liberdade, muitos amigos e sempre histórias inusitadas para contar. Não éramos bons garotos, cometemos muitas imprudências e fizemos descobertas típicas da idade. O rock era a trilha sonora que embalava toda essa história e os Titãs marcaram nossa geração.

Quem viveu os shows do Esquenta Verão, na Pajuçara, lembra que os Titãs sempre foram os mais esperados. A irreverência e as letras questionadoras eram tudo que queríamos ver e ouvir. Aqueles caras eram libertários. Traziam a crítica a um país marcado por 25 anos de ditadura e uma sociedade conservadora, capitalista e que exalava moralismo.

Tantos cantaram “Jesus não tem dentes no país dos banguelas”. Uma só frase para toda música foi bastante para afrontar o elitismo e jogar na cara da sociedade que o Cristo seria um dos tantos miseráveis desse país de injustiças. “Nenhuma pátria me pariu” escancarava a contrariedade ao conceito territorial, que serve aos interesses do Estado e de quem ganha com reservas de mercado.

Família, Homem Primata, Polícia, Nome aos Bois, Televisão, Porrada, Desordem e tantas outras músicas que inflamavam aquela juventude nos anos oitenta e noventa nos faziam imaginar que teríamos uma geração com novos valores, alheia ao conservadorismo e avessa à censura. Os Titãs dialogavam com os filhos da classe média e tratavam temas que durante muito tempo passavam alheios.

Essa geração foi a mesma que votou em 1989, na primeira eleição direta para presidente pós ditadura. Naquele ano, a disputa levou Fernando Collor e Lula para o segundo turno. Parecia um prenuncio de que o Brasil caminharia para um país melhor. Mesmo com a vitória de Collor, o herdeiro da ditadura, um político que iniciou a carreira como prefeito biônico de Maceió, cargo que ganhou de presente de casamento, ter Lula no segundo turno com 47% dos votos era algo épico.

Ainda dava para sentir o cheiro da ditadura e um nordestino, que foi para São Paulo como retirante, operário e líder sindical, quase foi eleito presidente com votação inacreditável. Ficou na cola de um autêntico representante da burguesia. A direita brasileira chegou a sentir o bafo quente do metalúrgico sem estudo no cangote. Isso era um feito titânico.

Numa comparação musical seria como se o Brasil tivesse o ditador Sérgio Reis como presidente por 25 anos e na primeira eleição pós ditadura o líder popular Mano Brown quase fosse eleito. Esse era o cenário que parecia ter sido construído com a contribuição do rock brasileiro e que os Titãs eram a maior influência. Pode ter sido ingenuidade, mas acreditávamos que quem escutava suas músicas teria ciência do conteúdo e que a massa que fazia coro reproduzia um discurso consciente.

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Depois de 30 anos, tivemos a certeza que, para muitos, as letras das músicas eram apenas parte do show sem a compreensão do discurso contestador. Muitos dos que entoaram Polícia com ênfase, seriam os mesmos que iriam fazer arminha, defender a repressão e praticar violências contra os mais pobres e vulneráveis.

“Miséria é miséria em qualquer canto
Riquezas são diferentes
Índio, mulato, preto, branco
Miséria é miséria em qualquer canto
Riquezas são diferentes”

Como pode alguém que cantou Miséria depois corroborar com a narrativa de que todos têm oportunidades e a desigualdade é decorrente da falta de vontade de trabalhar? Quantos dos que foram aos shows dos Titãs, hoje, enfatizam que a Bolsa Família serve para criar uma legião de vagabundos?

O que em 1989 parecia ser um desenho promissor da sociedade brasileira, com uma trilha sonora que apontava para mais justiça social, pluralidade e menos preconceitos, era só um rascunho que foi descartado. No Brasil dos Titãs não cabia Bolsonaro. Tem como explicar que milhões de fãs das suas músicas serem eleitores do fascismo? Em 2023, após usarem por quatro anos camisas da CBF, resgataram as camisas da banda com cheiro de naftalina para um show que seria o reencontro com a história.

Muitos dos que ouviram os Titãs há mais de três décadas não entenderam nada do que foi dito e continuam sem entender. Votaram contra as músicas que diziam adorar. Mesmo depois de Nando Reis dar Nome Aos Bois e equiparar bolsominios a série de facínoras que a música relata, muitos seguem fãs de algo que não entenderam. Entoaram a paz e agem com violência. Gritaram por respeito e propagam preconceito. Cantavam indignação à pobreza e condenam milhões a fome. Pediram igualdade e votam na desumanidade.

Os Titãs são sensacionais. É inacreditável que todos do grupo mantenham a coerência e capacidade artística. São perpétuos. Dali derivaram para muitas formas de expressão. Não era qualquer banda. Quem achava que seriam apenas “A melhor banda de todos os tempos da última semana” estava enganado. Se entre seus ouvintes tantos foram movidos pelo embalo sem compreensão, só lamento pela chance que perderam de transformar esse país

“Não importa contradição
O que importa é televisão
Dizem que não há nada que você não se acostume
Cala a boca e aumenta o volume, então”

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Palavras-chave
titãs