A maioria das crianças gostam de fazer rabiscos. É bastante manter um encontro com alguma superfície aparentemente lisa. Assim como uma lousa, um chão de barro batido ou mesmo arenoso, uma parede, um piso de cimento queimado, uma folha de papel. Especialmente uma folha de papel. Quando pirralho, tinha um coleguinha de escola que ao ver qualquer pedaço de papel começava a fazer rabiscos que logo viravam desenhos. De tanto se agarrar aos papéis, correndo atrás de qualquer folha, colou-lhe o apelido de Zé Papel.
Zé Papel rabiscava tudo. Mas gostava mesmo de rabiscar casas em folhas de papel. E as poucas casas do arruado onde morávamos, era o que ele mais gostava de desenhar. Uma delas, era uma casa de frente para o poente que aos poucos foi se enchendo de pessoas, plantas e coisas. Foi tendo animação.
À frente, parecendo um jardim, um pé de manacá e a persistência de algumas margaridas. A casa era simples mas nem tanto: de quatro águas; quatro janelas de frente; pelo oitão direito, janelas que se abriam para os quartos, fazendo um corredor estreito varando para o quintal; pelo lado esquerdo, um alpendre com uma porta dando para a sala de estar, duas janelas dando para a sala de jantar e uma segunda porta dando para a cozinha, que se estendia de um lado para o outro da casa. O alpendre se jogava para um caminho que se comunicava com o quintal. Assim, ambos outeiros tinham conexão com o quintal envolto por uma faxina de vara seca entrelaçada por pés de crote que lhe davam um ar de cerca viva.
Os outeiros eram caminhos. Verdadeiros becos. Serviam de passagens para o quintal. O outeiro esquerdo era muito querido por Zé Papel quando chovia. Ele rabiscava as bicas d’água do telhado banhando seus amigos de chuva. O outeiro do alpendre era a passagem de todos, desde as pessoas mais próximas, que o adentravam com um “ô de casa! ”, às pessoas mais reservadas como o padre da cidade; a professora do grupo escolar; a rezadeira; as comadres e compadres dos sítios e os parentes da Capital. Todos entravam pela porta do alpendre que dava para a cozinha. A mesa da cozinha era de seis lugares para além das cabeceiras. Os entrantes chegavam já se sentando e o café com bolacha eram servidos para acompanhar as conversas pra boi dormir.
Distante cinco passos da porta da cozinha, o quintal se preenchia com um banheiro, um girau e um quartinho. Logo atrás, um chiqueiro e um galinheiro. Zé Papel conseguia com seus rabiscos diferenciar as diversas fruteiras do quintal pelo tipo, tamanho e textura de suas folhas: abacateiro, coqueiro, pé de fruta pão, cajueiro, pitombeira, mangueira, pé de graviola, pé de carambola, coqueiro, pintangueira e laranjeira, além das bananeiras que se desenvolviam em touceiras ao longo da cerca, eram decifradas em linhas tortuosas que exprimiam o desejo de florir e dar frutos. Alguns passarinhos, uma familía de sagui, outra de timbu e as galinhas e seus pintinhos, além da porca com seus peitos sofregadamente chupados pelos bacuris. Exatamente oito: oito peitos, oito bacuris. Todos perambulavam para além da faxina.
A casa de Zé Papel era porosa: o jardim não tinha portão, suas portas e janelas eram abertas, seus becos eram corredores de gente e o quintal se amostrava para os outros quintais. Os bichos conviviam uns com os outros, mesmo aqueles aparentemente presos, porque o chiqueiro e o galinheiro eram referência apenas para a comida e o acolhimento noturno. O presente se elastecia para o passado e para o futuro num tempo só, sempre buscando vida. Esburacando faxinas.
O tempo se expandiu, Zé Papel cresceu, passou num concurso de tabelião e os donos da casa morreram. No cartório de imóveis, o tabelião encontro no lugar da casa um terreno georeferenciado com 8,35 metros de frente, 57,89 nas laterias e 9,35 de fundo. O satélite viu um terreno vazio. Os herdeiros confirmaram o retrato do imóvel sem nada! Aí, duas lágrimas caíram no papel que esquadrinhava a perfeição do metro quadrado.