Luísa é doutora em Estudos Literários e Feministas. Escreve e pesquisa a intersecção entre literatura e feminismo. luisagadelha[a]hotmail.com
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A escrita confessional e política de Annie Ernaux e o merecido Nobel de Literatura
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(Foto: Arquivo pessoal/theparisreview.org)

“Talvez, de tanto acumular memórias, eu possa voltar a ser quem era em um momento ou em outro.”

Foi com alegria que recebi, na manhã de hoje, o anúncio de prêmio Nobel de Literatura concedido à escritora francesa Annie Ernaux. Em que pesem os problemas do prêmio – que prioriza, invariavelmente, escritores do eixo norteamericano e europeu, majoritariamente homens – o Nobel me serve de guia (não o único, obviamente) para descobrir escritores que nunca antes haviam sido publicados no Brasil. Com ele, conheci a bielorrussa Svetlana Aleksiévitch e a polonesa Olga Tokarczuk, duas escritoras que admiro imensamente.

Não é o caso de Ernaux. Com quatro livros publicados no Brasil, venho acompanhando sua obra há algum tempo, e a francesa está entre meus escritores vivos preferidos – os outros dois eram Elena Ferrante e Javier Marías que, infelizmente, faleceu mês passado.

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Ernaux foi agraciada com o prêmio “pela coragem e acuidade clínica com que desvenda as raízes, os estranhamentos e os constrangimentos coletivos da memória pessoal”.  Acho que essa frase resume bem o que ela faz: mescla a história (a sua, a pessoal, íntima, única) com a História (a grande, inscrita nos livros e no imaginário comum, parte da memória coletiva), muito embora elas possam atuar, por vezes, como duas retas paralelas que nunca se encontram: “no decurso da existência pessoal, a História não significava nada. Dependendo do dia, éramos felizes ou tristes. Simples assim.”, diz Ernaux no que considero sua maior obra, Os anos.

A partir de eventos pontuais ocorridos em sua vida (um aborto clandestino, a morte do pai, a vergonha da violência familiar), Ernaux desperta reflexões sobre as dinâmicas sociais na qual se inseria e como tais acontecimentos se refletem em nosso tempo. São livros curtos, confessionais, episódicos, vertiginosos, mas são mais que isso: traçam um panorama de modos, crenças e costumes da França de sua época. Em suma, à medida que analisa a História, a escritora também buscar ser etnógrafa de si mesma, para utilizar uma expressão sua. Suas experiências pessoais são únicas, mas ela não se esquece que estão fincadas em um contexto sociopolítico. Por tudo o que elenquei acima, celebro a conquista de Ernaux: que o prêmio lhe dê mais projeção no Brasil, onde, espero, ela será exaustivamente traduzida e lida. Quando buscamos interpretar a sociedade a partir da literatura e, com isso, transformá-la, a literatura cumpre o seu papel primordial: deleite com a linguagem (“A língua continuará inventando o mundo com palavras”), mas também mudança social (“captar o reflexo da história coletiva projetado na tela da memória individual”). Afinal, a própria Ernaux assegura que sua escrita é política, fazendo da pena uma faca.

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