Anderson Pires é formado em Comunicação Social – Jornalismo pela UFPB, publicitário e cozinheiro.
Anderson Pires é formado em Comunicação Social – Jornalismo pela UFPB, publicitário e cozinheiro.
Seu Jorge é a prova que consumo não compra inclusão social
Compartilhe:
Foto: reprodução Instagram

O Seu Jorge é um artista conhecido em todo Brasil, com trabalhos internacionais, inclusive. Até conseguir fama teve uma vida de muita pobreza e chegou a morar na rua. Conseguiu conquistar espaço importante como cantor, com músicas de muito sucesso. Como ator teve destaque em filmes como Cidade de Deus e Marighella.

A fama lhe proporcionou dinheiro e condições de morar em locais nobres, de custo elevado, como em Los Angeles. Seu Jorge, apesar da origem pobre, de ser negro e sofrer racismo ao longo da vida, flertou com seus algozes por muito tempo. Na época da Copa de 2014, aquela em que os coxinhas fizeram questão de vaiar a presidente Dilma e mandá-la tomar no cu, ganhou notoriedade a participação de Seu Jorge, junto com sua então esposa, em festas VIP promovidas para a elite brasileira assistir jogos do Brasil. Na ocasião, Seu Jorge cantava para figurinhas carimbadas dessa elite que, por conveniência, tratavam-no como se fosse um deles.

É óbvio que ninguém pode ser criticado por vender o seu trabalho à elite brasileira. A venda da força de trabalho não significa perda da consciência de classe ou negação dos conflitos sociais. Mas nesse caso, chamou atenção a inserção do cantor, sem que o distinguissem dos participantes da festa, principalmente, pela sua esposa. Parecia serem todos iguais. Seria?

Seu Jorge também ganhou destaque por ostentar carrões, a exemplo da sua Lamborghini branca e outros modelos cobiçados pelos admiradores de veículos. As conquistas como artista lhe proporcionaram uma capacidade de consumo mais que justa. Afinal, é um cara muito talentoso, com uma voz marcante que lhe diferencia da média em qualquer lugar no mundo.

Durante um bom tempo, Seu Jorge cedeu ao processo de cooptação, que é gerada pela falsa sensação de que o consumo proporciona inclusão e liberdade. Essa, talvez, seja a grande armadilha do capitalismo, a crença de que consumir é libertador.

A sociedade de consumo é algo tão sedutor, que cria em nós a percepção de que o mercado é o grande instrumento de libertação da humanidade. Vamos tomar como exemplo um país que é sempre referido pelo cerceamento de liberdade: Cuba. É comum escutarmos críticas sobre a impossibilidade que os cubanos têm de acesso a bens de consumo. Imagine você não ter à disposição todas as possibilidades tecnológicas que existem no mundo.

Clique aqui e leia todos os textos de Anderson Pires

Mas, enquanto os cubanos não dispõem desse mundo de gadgets, desfrutam de moradia, educação, saúde, segurança e alimentação para todos. Não seriam esses bens e serviços uma forma mais genuína de liberdade? Vale lembrar, que a maioria do povo Cubano é formada por negros e negras, mas vivem num país onde a desigualdade é mínima e a possibilidade de manifestações de racismo é zero.

Qual seria a relação entre Cuba, consumo, liberdade e o racismo que Seu Jorge sofreu recentemente naquele show em Porto Alegre? A meu ver, está tudo entrelaçado, mas para o capitalismo, portanto para os que defendem o consumismo como ação libertadora, não os interessa que essas contradições sejam explicitadas e que seus elos sejam conectados. 

Notem que a ideia de que consumir, mesmo aquilo que pode ser nocivo, é libertadora, faz parte da estratégia capitalista desde sempre. Num passado não muito distante, as propagandas de cigarro eram exemplos destacados de afirmação de liberdade, embora propagassem o consumo de uma droga. Da mesma forma, com todos os produtos, principalmente aqueles de maior valor eram apresentados como símbolos de inclusão e confirmação de que se você pode comprar, você é livre.

Qual modelo de sociedade é mais livre, aquela que proporciona a todos o acesso a alimentação e aos serviços essenciais ou essa em que se pode consumir tudo que o dinheiro puder comprar? Observe-se que na segunda, apesar da abundância, comprar é um privilégio de poucos, a maioria da população vive à margem do que é oferecido pelo mercado.

Não sei se Seu Jorge, em algum momento, acreditou que consumir à semelhança da elite o tornaria aceito pela mesma, não sei se teve a ilusão de que parecer-se com eles o livraria do peso do racismo. Não é pecado sonhar com um mundo melhor. Contudo, se sonhou, não passou disso. A violência que ele sofreu em Porto Alegre é um exemplo da barbaridade que a elite é capaz de produzir. O racismo é um componente da desigualdade que os ricos cultivam. E, mesmo quando o negro, ou o pobre conseguem ascensão econômica e capacidade de consumo, não se tornam imunes ao preconceito. Às vezes, a depender do quanto o sujeito consuma, a rejeição não é manifesta em vaias, mas há outras formas de chacotas.

O exemplo de Seu Jorge ilustra bem a inversão de valores de que se nutre o capitalismo, à qual, nós que vivemos do trabalho, deveríamos estar atentos, porque não demora muito, a realidade se encarrega de mostrá-la. Nessa luta capitalista por mais e mais consumo, justo seria que nos distinguíssimos, porque o imprescindível é disputar uma vida digna, de modo a garantir o  essencial para toda a humanidade. Enquanto não nos apercebermos disso, o capitalismo continuará acumulando e, por sua vez, alimentando a desigualdade e todas as formas de segregação, inclusive a racial.

Compartilhe: