Anderson Pires é formado em Comunicação Social – Jornalismo pela UFPB, publicitário e cozinheiro.
Anderson Pires é formado em Comunicação Social – Jornalismo pela UFPB, publicitário e cozinheiro.
ads
Só escutaram o Lula porque o Mano Brown mandou
Compartilhe:
Lula, Mano Brown e Chico Buarque – Foto: Ricardo Stuckert – Instituto Lula

Era 1998, campanha para presidente do Brasil, Lula candidato pela terceira vez. Naquele ano, a direção nacional do PT resolveu que o diálogo com a juventude, que sempre foi feito através do movimento estudantil, tinha que ser repensado. O PT precisava se aproximar dos jovens negros e periféricos. Achava-se que era apenas um problema de ajuste tático, já que na visão dos dirigentes a estratégia estava certa, uma vez que era voltada para os mais vulneráveis. Logo, essa nova abordagem seria bem recebida.

Nessa época, morava em São Paulo e fazia parte da Executiva Nacional da UNE, como primeiro-tesoureiro. Em paralelo, militava no setor de juventude do PT, diretamente na coordenação da principal tendência do partido, a Articulação Unidade na Luta. Éramos a Juventude Fazendo Arte. Apesar de alguma contrariedade com essa nova forma de organização da juventude, acatamos a deliberação e fomos para a ação.

O hip-hop era a música que melhor retratava a periferia. Os rappers rimavam a vida dura e injusta que as comunidades e favelas do Brasil viviam. Mano Brown e os Racionais faziam parte da trilha sonora obrigatória. Pensamos: esse é o caminho, vamos trazer o movimento hip-hop para debater política e disputar o apoio para a candidatura do Lula.

Já existia uma boa articulação do hip-hop em todo país. Por mais inusitado que possa parecer, até na Amazônia tinha grupo organizado. O MH2O (Movimento Hip Hop Organizado) conectava representantes de todos os estados em torno da música e das questões que lhes interessavam. Trazer o movimento não foi a parte mais difícil. A candidatura do Lula era naturalmente a mais próxima dos seus interesses. O PT já acumulava muito debate com os movimentos negro, sindical e com a juventude estudantil. Parecia uma relação consolidada.

Ficamos empolgados, a ideia estava pronta: vamos organizar eventos para a campanha do Lula com foco nessa juventude que gira em torno do hip-hop e a principal estrela será os Racionais e seu líder, o Mano Brown. Definimos que o primeiro evento seria em São Paulo, quadra do sindicato dos bancários, na Tabatinguera, pertinho da sede nacional do PT. Viabilizamos a vinda de representantes do hip-hop de todo Brasil. Tinha também o pessoal do grafite, dança de rua, skate e conseguimos diversos ônibus para trazer a massa da periferia para esse ato político com o Lula, bandas de todas as regiões e os Racionais.

Cartaz do evento com o hip-hop na campanha de Lula para presidente em 1998 – Acervo Fundação Perseu Abramo

Evento marcado, tudo organizado, já achávamos que éramos gênios, bradávamos: finalmente conseguimos entender porquê o povão ainda vota na direita, o erro estava em sempre dialogar com jovens da elite estudantil. Chegamos ao dia do primeiro ato, tudo preparado para esperar os líderes políticos, os músicos e a juventude da periferia. Os ônibus começavam a chegar. Não faltava energia. A rapaziada pulava tanto que parecia até que as rodas sairiam do chão.

Ao contrário dos eventos com a turma do movimento estudantil, a maioria era de pessoas com quem nunca tivemos contato. Não eram colegas que vimos nas passeatas e lutaram contra as privatizações que FHC promoveu, muito menos puxavam algum papo ideologizado sobre a luta contra o capitalismo. Mas na nossa cabeça, eles tinham a vivência. Acreditávamos que a realidade era suficiente para gerar consciência e entenderem a importância de mudar os destinos políticos do Brasil.

Seria o ápice. Ninguém tinha feito isso antes. Vamos sair do debate intelectual para o empirismo puro. Nem quando os partidos comunistas infiltravam jovens nas comunidades durante a ditadura teve algo parecido. Talvez, se tivéssemos buscado inspiração nesse referencial histórico, teríamos lembrado que sofrimento e opressão não são a melhor escola revolucionária. Faltou um pouquinho de Paulo Freire nas nossas análises e abordagens.

Mas vamos lá. O evento começou, os primeiros políticos começaram a discursar. Quem estava na quadra dava pouca atenção às falas. Quanto mais gente chegava, menor era o interesse pelos discursos contra FHC e o neoliberalismo. O local já estava lotado, quando foi a vez do Senador Eduardo Suplicy falar. Pensamos: agora irão prestar atenção. O Suplicy é o cara da renda básica universal, sempre defendeu os mais vulneráveis, tem muito apelo popular.

O Suplicy começou a falar com aquele seu jeito calmo e compassado. Defendeu a renda básica, lembrou a luta dos negros e para deixar o discurso mais atraente e sedutor, finalizou citando Martin Luter King e uma de suas passagens mais marcantes: “aprendemos a voar como pássaros, aprendemos a nadar como os peixes, mas não aprendemos a conviver como irmãos”. Para ficar ainda mais dramático, o senador fechou o discurso gritando: voem, voem. A massa que durante o discurso mostrava sua impaciência, reagiu a fala balançado os braços como se fossem voar e fazendo chacota com o político.

Aquela altura, já tínhamos percebido que o interesse do público não era propriamente o que imaginávamos. Mas tudo bem, o Suplicy não é um representante do povo. Quando o Lula for discursar todos irão ouvir com atenção. Afinal, o cara é o maior líder popular da América Latina, um legítimo representante da classe trabalhadora, nordestino e retirante, os jovens da periferia irão se identificar com ele e o ouvir com atenção.

Depois de algumas horas de discursos e apresentações de representantes do hip-hop dos estados, chegava a hora do Lula falar. Quando o locutor anunciou, a massa que gritava impaciente esperando os Racionais, passou a gritar ainda mais, numa demonstração clara de que não estavam ali para escutar o político.

Clique aqui e leia todos os textos de Anderson Pires

O Lula pegou o microfone e os gritos aumentaram. Era impossível fazer um discurso naquelas condições. No palco junto com o candidato a presidente, estavam diversas lideranças políticas e os Racionais. A situação ficou constrangedora, a tese que parecia perfeita desmoronava. O jovem negro da periferia não queria ouvir o Lula. Foi aí que o Mano Brown pegou o microfone e puxou um “tá ligado, ladrão”. Magicamente, todos prestaram atenção.

O líder dos Racionais jogou o papo reto para todos que estavam ali. Disse: se estão na merda, esquecidos e violentados, precisavam ouvir o cara falar. O Lula estava acuado, chegou a desaparecer no palco, quando o Mano Brown lhe puxou, levantou seu braço e disse pra massa: “tá ligado, ladrão. Esse é o cara”. Daí para frente, passaram a escutá-lo.

Depois desse primeiro evento, o próximo seria em Belo Horizonte, na Praça da Estação. Da mesma forma que em São Paulo quem foi não queria escutar os políticos. Mas o desfecho não foi o mesmo. As galeras quando se encontraram colocaram a rivalidade para fora, o pau comeu e jorrou sangue. O projeto de conexão com a juventude negra e periférica acabou ali. Chamamos de volta a turma de playboys do movimento estudantil que estava a fim de escutar o Lula.

Pois é, essa história mostra o tamanho da desigualdade que existia e existe no Brasil. Até quem militava em prol dos vulneráveis tinha compreensão distorcida da realidade, ao ponto de acharmos que a conscientização seria fácil entre os que mais sofrem. O Lula apesar de oriundo da parcela mais pobre da sociedade, conseguiu ter mobilidade social e de alguma forma foi atingido por políticas sociais. Porém, não serve de parâmetro, porque, provavelmente, nunca mais um migrante nordestino, sem formação superior vai ser presidente da república. Isso os jovens da periferia sabem.

Por mais abrangente que sejam as políticas públicas, temos abismos sociais que estabelecem percepções distintas da política. São muitos perfis de jovens pobres. Se ele for um negro da periferia, está na parte mais funda e quase invisível da sociedade. Certamente, a exclusão em que vivem é tão grande, que muitos não enxergam na política a menor possibilidade de qualquer mudança em suas vidas. 

Nessa hora, precisamos ir além dos pequenos ajustes sociais que o liberalismo propõe. Os liberais conhecem os problemas sociais do Brasil, mas sempre apontam como solução atuar com paliativos na consequência. Supõem e apontam os erros na saúde, educação e segurança pública, como se maquiagens nessas áreas durassem. Apesar de saberem que a causa de tudo está na desigualdade e na concentração de renda, em sintonia com a sua visão liberal do mundo jamais vão sequer tocar na raiz dos problemas. Na melhor das hipóteses, propõem pequenas reformas, para que os seus privilégios continuem inatingíveis.

Os jovens que não queriam escutar o Lula em 1998 continuam a se multiplicar nas periferias e favelas. O lamento dos políticos não lhe soa bem. Preferem escutar quem está próximo, os supostamente iguais. Contudo, estes nem sempre têm uma posição progressista ou de esquerda. Assim como há, nas comunidades, o rapper contestador, também há muitos pastores conservadores para alienar, bem como traficantes para os “empregar”. 

Compartilhe: