Tiago Germano é autor da coletânea de crônicas Demônios Domésticos (Le Chien, 2017), indicada ao Jabuti, e do romance A Mulher Faminta (Moinhos, 2018). Seu último trabalho é o volume de contos Catálogo de Pequenas Espécies (Caos e Letras, 2021).
Tiago Germano é autor da coletânea de crônicas Demônios Domésticos (Le Chien, 2017), indicada ao Jabuti, e do romance A Mulher Faminta (Moinhos, 2018). Seu último trabalho é o volume de contos Catálogo de Pequenas Espécies (Caos e Letras, 2021).
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Como se esquecer de um fascista
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(Foto: Arquivo pessoal/Majo’s Fotografias e Colorização)

Hoje queria falar do meu avô, Fausto Germano, mas antes eu queria falar de Daniel Silveira.

Há pouco precisei me lembrar do nome do deputado, agraciado esta semana com a Ordem do Mérito do Livro, da Fundação Biblioteca Nacional, e, embora a história esteja fresca em minha memória, juro que tive que googlar “Ordem do Mérito do Livro” pra me lembrar.

Essa situação resume toda a raiz do problema. Um dia todos precisarão recorrer à história para lembrar de figuras como Silveira… e é isso que irão encontrar.

Um Estado fascista é a metonímia do seu povo, à exceção de uma ou outra figura que ousou enfrentá-lo e, geralmente, morreu por isso. É muito significativo, por exemplo, que pouco se tenha falado do nome de Marielle Franco quando, não custa lembrar, o agraciado com a Ordem, entre outros atentados à democracia, destruiu a placa em homenagem a ela e todo ano replica o ato, só pra tripudiar da memória de uma mulher negra, assassinada pelo Estado contra o qual militava.

Você que está me lendo pode tentar dar seus pulos e, se der a sorte de não ser mártir, tentar ser lembrado por outra coisa no futuro. Mas como alemãezinhos escondendo porta-retratos de avôs uniformizados, seus netos vão se lembrar de você como um porco fascista porque a maioria dos brasileiros teve um surto de demência em 2018 e é isso ficará pra história, e não este texto.

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Meu avô, Fausto Germano (sobre quem devia ser este texto) lutou contra esse tipo de demência há mais de meio século. Morreu em decorrência dela (muitos associavam o seu Alzheimer ao trauma, pois foi dado como morto depois de ter sido atingido em campo, pelo deslocamento de ar de uma explosão). É com orgulho que exibo a imagem dele, hoje em cores devido ao trabalho da Majo’s Fotografias e Colorização. Meu avô expedicionário, uniformizado, numa época em que o Exército Brasileiro comprava brigas mais sérias que duvidar de urna eletrônica, passar cal em meio-fio e comprar viagra e prótese peniana pra coronel meia-bomba.

Eu tenho certeza que não era pra isso que o soldado Fausto Germano batia continência, quando marchava atrás da banda marcial de Picuí, religiosamente, a cada alvorada.

É pela memória de pessoas como meu avô que eu escrevo, preenchendo os silêncios que sua vida deixou com as histórias que meu outro avô (Eufrásio Dantas) contava, de uma época em que gente pabulosa era cegada a golpe de bigorna, e não andava por aí posando de jet-ski, zombando da fome do povo.

É isso. Que minha literatura, com mérito ou não, faça o resto do trabalho.

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