Tiago Germano é autor da coletânea de crônicas Demônios Domésticos (Le Chien, 2017), indicada ao Jabuti, e do romance A Mulher Faminta (Moinhos, 2018). Seu último trabalho é o volume de contos Catálogo de Pequenas Espécies (Caos e Letras, 2021).
Tiago Germano é autor da coletânea de crônicas Demônios Domésticos (Le Chien, 2017), indicada ao Jabuti, e do romance A Mulher Faminta (Moinhos, 2018). Seu último trabalho é o volume de contos Catálogo de Pequenas Espécies (Caos e Letras, 2021).
Sobre livros e cabras
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Meu pai é zootecnista. Era mais fácil de explicar na infância, quando eu podia dizer simplesmente que ele vivia de cabras. Da mesma forma que ele pode dizer hoje que o filho dele é escritor, e vive de livros. Óbvio que um escritor não vive apenas de livros. Como zootecnistas também não vivem somente de cabras. Mas, da mesma forma que eu nunca me arrisquei a perguntar, por exemplo, do que vivem os zootecnistas – ou mesmo como vivem os zootecnistas se já existem os fazendeiros, os frigoríficos e sobretudo os veterinários para viver das cabras –, meu pai nunca se arriscou a perguntar do que vivem os escritores senão dos livros – ou como vivem os escritores se já existem os editores, os distribuidores e sobretudo as livrarias para viver disso também.

Livros, obviamente, são muito diferentes de cabras. Para começo de conversa, livros são, convenhamos, bem mais fáceis de se encontrar do que cabras – embora não sejam tão fáceis de se vender. Um livro no Brasil custa em média 30 reais. Um escritor ganha, geralmente, dez por cento do preço de capa do seu livro. Você não precisa ser um matemático, tampouco um zootecnista ou um veterinário, para concluir que não dá para viver disso. Sim, escritores são péssimos em matemática, mas não é esse o ponto: eles sabem que jamais conseguirão vender, digamos, um livro por dia. E sabem também que, ainda que conseguissem, não dá para fazer sequer uma refeição no Brasil com três reais no bolso.

Eu não sei quanto custa uma cabra. Eu não sei quanto dinheiro um fazendeiro deve gastar nela, quanto de lucro ele consegue pelo seu leite, pelo seu couro ou pela sua carne, e quanto disso precisa ser investido em veterinários – e em zootecnistas, claro. Meu pai, entretanto, conseguiu sustentar toda a sua família, eu e mais outros dois irmãos mais novos, junto com a sua esposa (que não é zootecnista, mas trabalhava junto com ele no lugar onde ele era).

Uma criança custa muito mais que um livro – muito mais que uma cabra até. Cuidar de uma criança envolve inclusive o investimento em livros e, dependendo da intolerância à lactose ou da sensibilidade do paladar, o investimento em cabras (no seu leite, no seu couro, na sua carne). Neste ponto não sei exatamente para onde o raciocínio quer me levar, mas acho importante frisar que, diferente dos meus pais, minha esposa e eu somos um casal de escritores sem filhos, partidários da ética animal e um tanto resistentes à carne de buchada.

Atualmente, contemplamos aturdidos (como meus pais, na época deles, contemplaram) uma recessão econômica e uma revolução nas comunicações, uma crise que hoje não envolve apenas a decadência do livro em papel, mas de todo o nosso ganha-pão: jornais, revistas, editoras, distribuidoras e livrarias. Mais grave que isso, contemplamos um fenômeno político e social de desprezo a esta cultura analógica e a apologia não de uma nova cultura, digital, mas de uma incultura, que faz a cultura de massa parecer erudita, até.

Eis, enfim, um parágrafo sem cabras, numa pequena fábula que não sei exatamente o que pode nos ensinar sobre a crise – não aquela que meus pais enfrentaram nos anos 1980, quando toda esta história começou –, mas a que a minha geração está enfrentando agora, quase quarenta anos mais tarde. O que sei é que tudo isso me lembra uma outra história – que, não por acaso, li num livro – que já tive a oportunidade de contar por aqui e que vou repetir porque sei que não foi muito lida.

Trata-se da anedota da família que, muito pobre e com fome, pede a ajuda do político de uma pequena cidade. O político, preocupado com os seus votos e a sua reputação, se dispõe a ajudar e presenteia a família com uma cabra. A cabra, entretanto, começa a fazer sujeira na casa, destruir a plantação da família no quintal e acabar com a pouca comida e o pouco sustento de que a família dispunha. Eles voltam ao político que, de novo, se dispõe a resolver o problema: ele toma a cabra de volta.

Eu não sou zootecnista, sou escritor. É muito possível que, se substituíssemos a cabra por um livro, nesta história, ela terminasse da mesma forma, com a família ainda muito pobre e com fome, mas sem um problema a mais em sua vida (a cabra ou o livro, que afinal ocupa muito espaço). Mas também é possível que, dentro do livro, a família achasse uma solução para um outro problema: o do político que os ludibriou, gerando um problema para fazê-los esquecer do anterior. É possível, também, que o político terminasse tomando o livro de volta (autoridades costumam se intimidar quando descobrem o poder de um “amontoado de coisas escritas”). Mas eis a principal diferença entre um livro e uma cabra: só o primeiro rende um patrimônio que ninguém, jamais, conseguirá te roubar.

Texto publicado originalmente no periódico Correio das Artes.

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